Travesti conquista doutorado com tese sobre racismo e homofobia

01 de abril, 2017

Pela primeira vez, na quinta (30), uma travesti negra obteve o grau de doutora em educação na UFPR, em que estudou como professores negros homossexuais superaram situações de homofobia e racismo. Na banca, Megg de Oliveira usou vestido com nomes de travestis mortas. Professora substituta na UFPR, ela diz ainda enfrentar preconceito e pretende lutar pela inserção de travestis no ensino superior.

(Folha de S.Paulo, 01/04/2017 – acesse no site de origem)

O lugar de existência das travestis, para a sociedade, é na rua e na prostituição. Se eu parar dois minutos para esperar o ônibus, já acham que estou marcando ponto. A nossa presença, fora da prostituição, não é naturalizada. Por causa disso, eu encenei por muito tempo uma existência masculina que não era minha, para poder sobreviver. Foi um processo de resistência.

Nasci em Cianorte, no Paraná, já tem mais de 40 anos. A idade exata é segredo de Estado! Meus pais vieram de Minas Gerais, da roça mesmo, atraídos pela promessa do café. Éramos em sete irmãos. A partir dos sete anos, todo mundo tinha que trabalhar. A escola era algo secundário.

Desde muito cedo, minha identidade de gênero já era muito clara. O meu sonho era ter cabelo comprido. Amarrava a tolha de banho na cabeça e fazia um coque, como a minha mãe. Em casa, só me chamavam de Kim, que era uma abreviação do meu nome. Meus irmãos respeitavam, não me expunham. Eram muito solidários. Tinha um esconderijo no fundo do quintal, onde colocava minhas bonecas, roupinhas, bijuterias.

Foi na escola que começou a marcação cerrada. A fila dos meninos, o banheiro dos meninos. Eu não respondia chamada de jeito nenhum, porque não me reconhecia naquele nome. Comecei a sofrer assédio moral, ameaça de violência. E a me retrair.

Eu tinha uma existência muito solitária e desenhava muito. O desenho surgiu como uma forma de me comunicar com as pessoas. Naquela época, eu nem sabia o que era universidade. Na minha casa, não tinha nem livro.

Com 20 anos, me mudei para Curitiba. Porque tinha que expressar minha identidade de gênero. Mas foi muito gradual. Quando ia para o trabalho, expressava uma identidade masculina. Mas, quando estava em casa, aí eu exercitava minha feminilidade.

Foi uma estratégia de sobrevivência, mesmo. Me reconhecia como travesti desde muito cedo, mas não queria a prostituição. Porque esse era o lugar da travesti, de muita violência e sofrimento. Existe até um processo de cafetinagem por trás disso tudo. Mas não queria nada disso para a minha vida. Então, fazia uma encenação pública, uma performance masculina.

UNIVERSIDADE

Naquela época, eu trabalhava numa agência de publicidade, na área de criação, com desenho. E enfrentei muito preconceito, tanto por racismo quanto por homofobia.

Fui percebendo que, se não tivesse boa formação acadêmica, não ia ter lugar nenhum no mundo. A minha existência seria um fracasso absoluto. À medida que fui progredindo academicamente, fui me construindo como travesti e negra, expressando minha identidade. Aí tinha um repertório para me proteger.

A universidade foi um espaço emblemático, assim como os movimentos sociais. Eu me formei em desenho na Escola de Belas Artes do Paraná, fiz especialização em história da arte e história e cultura africana. Tentei o mestrado em educação na UFPR quatro vezes, até passar. Era aquela história: eu passava na prova escrita, o meu projeto era bem avaliado, mas não havia ninguém para me orientar. Era muito constrangedor.

Até que um professor [Paulo Vinicius Baptista da Silva] aceitou meu projeto e me tomou como orientanda. Aí minha carreira deslanchou. Dei aula, escrevi artigos, emendei o doutorado (sob orientação da professora Maria Rita de Assis César), me deram espaço para trabalhar.

Não que tenha sido fácil. Eu só sou uma doutoranda quando estou na UFPR. Quando eu coloco o pé fora dali, sou só uma travesti, que pode ser agredida, ofendida. Minha presença ainda não é naturalizada. Hoje, eu sou professora da UFPR. Mas o espaço que me sobra é no serviço público, porque a iniciativa privada não contrata.

A minha pesquisa de doutorado foi feita com quatro professores negros homossexuais, de ensino fundamental e médio, sobre a resistência de gays e negros na educação. São existências marcadas pelo enfrentamento.

Num primeiro momento, eles tentaram negar sua sexualidade. Depois, esses xingamentos de “viado”, “bicha preta”, foram ressignificados de forma positiva. “Sou viado, sou bicha preta, mesmo, e daí?” Isso desmonta seu agressor. Todos entendem que a vida acadêmica possibilitou esse empoderamento. E a presença deles na escola acaba sendo um modelo de existência para os estudantes.

A defesa da minha tese não é uma conquista individual. É coletiva. Do movimento negro e principalmente de travestis e transexuais. Porque, para nós, a saúde sempre foi o foco da militância, pelo acesso ao tratamento hormonal, à cirurgia de readequação genital. A educação passou a ser pleiteada há pouco tempo.

A gente quer ter voz, queremos ser tratadas como pessoas que pensam e produzem conhecimento. É uma possibilidade de mudar a postura dentro das escolas e tornar a existência dos LGBTs menos sofrida. A educação possibilita essa mudança.

Depoimento a
ESTELITA HASS CARAZZAI
DE CURITIBA

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