Jornalista Giuliana Bergamo conta o quanto aprendeu com Maria Clara de Sena, a primeira mulher transgênero a concorrer o Prêmio CLAUDIA
Dizem que o mundo está chato. Eu acho que, na verdade, não se trata de tédio ou coisa do tipo. O mundo está apenas mais trabalhoso.
(Revista Cláudia, 16/09/2016 – Acesse no site de origem)
Em 21 anos, pela primeira vez temos, entre as finalistas do Prêmio CLAUDIA, uma mulher transgênero. Maria Clara de Sena nasceu biologicamente menino. Viveu um inferno dentro da própria família até descobrir que ela era, na verdade, uma mulher. Antes disso, apanhou muito do pai por seus “trejeitos”. Foi excluída e maltratada por outros parentes e amigos. Já adulta tornou-se a única representante trans entre os sete Mecanismos de Prevenção e Combate à Tortura que existem no mundo.
Quando a conheci, em abril, eu sabia muito pouco sobre a vida de uma pessoa transgênero. No lugar da informação, havia um monte de suposições e, preciso ser honesta, preconceitos. Não, eu nunca achei que alguém que nasceu em um corpo com o qual não se identifica tem menos direitos do que qualquer outra pessoa, que fique claro. Mas uma névoa encobria a minha ideia do que é ser trans.
Durante a longa entrevista que fizemos na sede do Grupo de Trabalhos em Prevenção (GTP), que auxilia profissionais do sexo, fui testemunha de como feminino e masculino podem conviver muito bem em um corpo – ainda que o tal tenha mais de 1,90 metros de altura e uma força viril difícil de esconder. Maria Clara é doce, sincera e sem meias palavras para contar qualquer um dos dramas, aflições e violências que viveu. Senti-me à vontade, portanto, para perguntar o que viesse à cabeça.
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De volta a São Paulo, diante do meu computador, travei. Assim como faço com qualquer finalista, eu precisava escolher a melhor forma para apresentar Maria Clara às leitoras de CLAUDIA e, dessa forma, fazer com que gostassem dela. Mas, entre mim e o público, havia um obstáculo importante: o tabu do universo trans. Apresentar a candidata à comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais) ou a quem é minimamente simpático a ela é baba. Maria Clara é gente fácil de gostar. Mas não era este o caso.
Infelizmente eu sei bem o quanto a população em geral ainda tem dificuldade de, sequer, chegar perto do tema. Isso sem falar na quantidade de ofensas e violências que ele pode suscitar. Eu precisava, de certa forma, protegê-la também. Teria mais trabalho, portanto.
Depois de muito matutar, fiz uma escolha: eu abriria o texto com uma passagem da vida de Maria Clara que, na minha opinião, ilustra muito bem tanto o conflito interno de alguém que vive em um corpo com o qual não se identifica, como a violência que essa pessoa experimenta justamente por isso. Minha opção, no entanto, me obrigaria a usar o nome masculino de Maria Clara antes deste que ela elegeu já adulta, quando assumiu o gênero feminino.
Para não cometer uma deselegância, liguei para ela e contei sobre minha ideia. “Faça isso. Eu também acho importante contar essa história”. Segura, escrevi e publiquei o texto. Comovida com o sofrimento da candidata, eu esperava, a maior parte das leitoras criaria empatia por ela. Ou, na pior das hipóteses, não teria coragem de manifestar seu repúdio.
Dias depois, recebi um email muito simpático e educado – coisa raríssima hoje em dia – de uma leitora militante do movimento trans. Na mensagem, ela elogiava a iniciativa da revista de selecionar Maria Clara para participar da premiação. No entanto, pedia a reelaboração do texto por tratar a finalista no masculino ao longo do primeiro parágrafo e por usar “gratuitamente” seu nome de registro. Afinal, dizia ela, da forma como está escrito, ninguém da comunidade se sentiria à vontade de divulgar o Prêmio. Compreendi. Como eu disse, o mundo não está chato. Está trabalhoso.
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