(Folha de S.Paulo, 04/08/2016) Você é acusado de um crime que não cometeu e está na prisão na espera do processo. Há uma alternativa.
Você pode persistir em se declarar inocente, como de fato você é; neste caso, você será julgado, correndo o risco de perder o processo –e, com ele, o que você mais almeja: sua liberdade.
Ou, então, você pode se declarar culpado, admitindo um crime que não cometeu; neste caso, você será liberado porque o Ministério Público, em troca de sua “confissão”, garante que sua pena será igual ao tempo que você já passou na prisão até agora.
Não é um dilema fácil. Talvez eu escolhesse o segundo caminho, injusto, inglório e aparentemente vantajoso, desistindo de proclamar minha inocência para sair da prisão já.
De qualquer forma, admiro quem optar por proclamar sua inocência, por arriscada que seja essa escolha.
Uma tocante reportagem de Chico Felitti, na Folha de 30/7, apresenta a história de Neon Cunha, 44, transexual.
Cunha, que se sente menina desde os dois anos e meio de idade, pede hoje a retificação de seu registro civil –ou seja, a mudança do nome de batismo e do gênero. A decisão jurídica é dificultada por duas razões.
Primeiro, Cunha não planeja amputar seu sexo anatômico masculino, que não a incomoda. Isso não constitui um caso raro, mas é uma escolha que pode confundir os magistrados.
Segundo, e mais complexo, Cunha recusa o diagnóstico de “disforia de gênero”: ela não quer “passar por um processo de patologização”. Ela declara: “Eu não tenho essa disforia, nunca tive. Uma mulher pode nascer com um falo e não se incomodar com isso”.
Em tese, o diagnóstico de disforia de gênero é uma condição para a Justiça autorizar a retificação do registro civil. Ou seja, para mudar de identidade, é necessário ser diagnosticado como portador de um transtorno que é a tal “disforia de gênero”.
A definição da disforia de gênero (302.85 no DSM V, e F64.1 na Classificação Internacional das Doenças –CID) implica em 1) uma incongruência entre o sexo anatômico do indivíduo e o gênero ao qual ele sente pertencer, 2) angústia e desconforto clinicamente significativos, por causa dessa incongruência.
O DSM V, por exemplo, reconhece que, em grande parte, angústia e desconforto têm sua origem nas dificuldades de viver socialmente quando sexo e gênero discordam. Mas, de qualquer forma, por mais que o sofrimento seja causado pela rejeição social, a “disforia de gênero” está na lista dos transtornos mentais.
Agora, Neon Cunha poderia dizer “tudo bem, estou doente, mudem minha identidade”, mas ela quer poder ser quem ela é, com registro de identidade feminino, mas sem o carimbo de um desvio patológico. Ela se recusa a deixar que sua condição seja reconhecida como um transtorno listado no DSM ou na CID.
Neon resiste contra a versão mais opressiva do poder contemporâneo: o biopoder, que, no caso, estabelece normas e molda comportamentos invocando “apenas” a pretensa neutralidade da “ciência”.
Ora, “The Lancet Psychiatry” acaba de publicar uma pesquisa de campo, de Rebeca Robles e outros, em que os autores se perguntam “se existem provas para sustentar a classificação da incongruência de gênero como uma condição psiquiátrica”. Muito parece indicar “que a aflição e a disfunção que numerosos participantes da pesquisa lembram ter experimentado na sua primeira adolescência eram associadas com suas lembranças de rejeição social e violência naquele período da vida, muito mais do que com fatores diretamente relacionados com a incongruência de gênero”.
A conclusão da pesquisa é que as dificuldades dos indivíduos transgêneros deveriam ser excluídas da lista dos transtornos mentais e de comportamento.
Sem isso, os indivíduos transgêneros continuarão sofrendo um duplo estigma: o de ser transgênero e o de ter um diagnóstico de transtorno mental. A conclusão dos autores responde à demanda da maioria dos clínicos, para quem as identidades de gênero dos transgêneros não são psicopatológicas, a não ser pelos efeitos de sua exclusão social.
Seria maravilhoso se os magistrados que examinam o pedido de Neon lessem a pesquisa de Robles e, no mesmo número de “The Lancet Psychiatry”, o comentário de Griet De Cuypere e Sam Winter (Hospital Universitário de Gante, Bélgica, e da Universidade Curtin, de Perth, Austrália).
Acesse o PDF: Uma transexual não aceita que sua condição seja vista como transtorno, por Contardo Calligaris (Folha de S.Paulo, 04/08/2016)