O sistema de poder utiliza a violência de gênero e racial como uma ferramenta de controle e silenciamento. É preciso resistir à sua naturalização.
Após mais de seis anos de luta incansável por justiça, familiares, amigos e movimentos sociais viram o julgamento dos executores de Marielle Franco e Anderson Gomes ser concluído em primeira instância. Ronnie Lessa e Élcio de Queiroz, levados a júri popular, confessaram os crimes por meio de colaboração premiada e foram condenados a 78 e 59 anos de prisão, respectivamente. Este caso, símbolo da luta política das mulheres negras, é também um alerta: mulheres que desafiam o sistema e ocupam posições de poder enfrentam riscos iminentes — e muitas vezes mortais.
A violência contra Marielle não começou nem terminou com seu assassinato. Ela representava o povo nas esferas de poder, e por isso, despertou tanto ódio quanto admiração. Após o crime, uma campanha de deslegitimação foi lançada para criminalizar a vítima, impulsionada por notícias falsas que buscavam justificar sua morte. Tentaram retratá-la como “mulher de traficante”, desmerecendo sua vida e afastando qualquer solidariedade ou comoção. Seu assassinato, entretanto, foi mais do que o fim de uma vida — foi uma tentativa de destruir sua reputação e as ideias que ela personificava.
Embora os executores tenham sido condenados, a “justiça” que o Estado oferece é limitada. Não há sequer previsão de julgamento para aqueles que planejaram e encomendaram o crime, e menos ainda respostas sobre as inúmeras interferências e omissões que ocorreram durante a investigação, prejudicando a elucidação de um caso com raízes muito mais profundas do que o ato de dois assassinos de aluguel.
Assim como Marielle, Anielle Franco enfrenta o peso da violência estrutural. Desde a morte de sua irmã, ela luta por justiça, não apenas pela memória de Marielle, mas também pelas mesmas pautas sociais.
No entanto, após sofrer violência sexual, viu sua carreira ser prejudicada, sua competência questionada e sua voz desacreditada. Além de encarar a dor da violência, Anielle precisou lidar com o estigma social, as pressões públicas e os questionamentos que tantas mulheres ouvem: “por que não denunciou antes?”
A opressão estrutural é tão forte que ela mesma chegou a questionar suas percepções e até a se culpar por não ter falado antes. Isso revela a complexidade das dinâmicas de poder e da responsabilização injusta que recai sobre as vítimas, aprisionando-as em uma teia de culpa e silenciamento. Muitas vezes, a dificuldade de obter outras provas além do depoimento da mulher permite que os acusados se defendam apresentando-se como “bons maridos” e “pais de família”, enquanto atacam a credibilidade da vítima. Argumentos desse tipo tendem a ser facilmente aceitos pelo senso comum, devido à prevalência dos estereótipos sistêmicos a que todas as mulheres estão submetidas.
Nenhum lugar é seguro para uma mulher, menos ainda um cargo político ou outra posição de poder. A violência de gênero se revela como um instrumento de controle que limita os espaços que as mulheres, especialmente mulheres negras, podem alcançar. Essa violência não só tenta afastá-las dos espaços de influência, mas também as pune severamente quando ousam transgredir esses limites, chegando, como no caso de Marielle, à retirada da vida. É uma violência enraizada no nosso inconsciente coletivo e, muitas vezes, normalizada como algo aceitável ou até justificável — não pelo comportamento de quem comete, mas de quem a sofre.
Marielle não foi uma figura ordinária. Sua presença em uma posição de influência desafiava os interesses estabelecidos, fazendo dela um alvo para aqueles que buscam manter a ordem estrutural.
Anielle transformou seu luto em luta e seguiu em frente, dando continuidade ao trabalho da irmã, conquistando avanços importantes para os movimentos sociais que representa e plantando sementes de mudança pela sua trajetória. Mulheres dignas de muito respeito e reverência, que tiveram sua vida limitada, violentada e interrompida em razão de um sistema que não as reconhece dessa forma.