(El País, 21/09/2015) Em uma conversa informal numa noite quente de sexta-feira, 12 mulheres, na faixa dos 30 anos, falavam sobre questões relacionadas ao machismo. Cantadas nas ruas e assédio no trabalho estavam na pauta. Mas na troca de experiências, surgiu o assunto que se transformou em mais uma pesada estatística: das 12 interlocutoras ali presentes, três já foram estupradas. Duas delas revelaram que o agressor era um conhecido. Uma contou que o estupro partiu do então namorado, quando ela tinha 15 anos, no que seria a primeira experiência sexual de sua vida. Nenhuma das três prestou queixa.
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Essa pequena amostragem de fatos reais é capaz de, se ampliada, retratar fielmente o mapa da violência sofrida por milhares de mulheres e meninas todos os dias ao redor do mundo. Segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 67% dos casos de violência entre as mulheres são cometidos por parentes próximos ou conhecidos das famílias; 70% das vítimas de estupro são crianças e adolescentes e apenas 10% dos estupros são notificados. A maioria dos agressores não é punida.
Definitivamente, precisamos falar sobre a violência sexual contra as mulheres. E o estupro é a última consequência dessa realidade que pode começar com uma cantada na rua ou um olhar constrangedor na fila do supermercado. Isso também é violência.
Ao redor do mundo, mulheres combativas afinam seus discursos contra a violência de gênero em torno de uma questão central: a educação. “A única solução verdadeira para mudar a mentalidade é a educação”, afirmou Leslee Udwin, consultora da ONU em direitos humanos e diretora do documentário India’s Daughter (Filha da Índia). Ela foi estuprada aos 18 anos.
Seu filme foi apresentado pela primeira vez no Brasil na semana passada em São Paulo. Remonta a cena de um crime bárbaro ocorrido na Índia no final de 2012: o estupro coletivo de Jyoti Singh, uma estudante de medicina que voltava para casa com um amigo, quando foi abordada, dentro de um ônibus, por seis homens que a estupraram, violentaram e arrancaram suas vísceras antes de jogá-la na beira da estrada. Jyoti morreu 13 dias depois.
O fato provocou uma onda de protestos na Índia que se arrastou por quase dois meses. Dos seis agressores, um era menor de idade e ficou detido por três anos. Os outros cinco foram presos e condenados à morte. Um deles foi encontrado morto na cela, antes de receber a sentença.
O caso de Jyoti revela uma violência monstruosa, de difícil entendimento. Aconteceu com ela, na Índia, mas os altos índices de mulheres que já sofreram algum abuso mostram que poderia ser em qualquer lugar do mundo. No fundo – talvez nem tão no fundo assim – as filhas da Índia somos todas nós.
Os advogados dos assassinos de Jyoti afirmaram no filme que, basicamente, a culpa pelo ocorrido era dela. Segundo a linha de raciocínio de seus defensores, uma mulher correta não deveria estar andando com um amigo na rua àquela hora da noite. Em entrevista ao documentário, um dos criminosos afirmou que “uma garota é mais responsável por um estupro do que um garoto”. Na Índia, o documentário foi proibido.
Os estupros ocorridos nas universidades brasileiras – diversos deles são abafados e não chegam ao conhecimento público –, os assédio às mulheres nas ruas ou mesmo xingamentos sexistas no meio político são parte de um todo. Chamar alguma mulher de vaca também é violência de gênero.
As situações são tão naturais, que toda mulher já passou por alguma situação capaz de incrementar as estatísticas. Pergunte a qualquer uma. E não se trata de fiu-fiu. O jogo é baixo, com palavras pesadas como “deixa eu chupar você” dito em alto e bom som a uma profissional que hoje está na casa dos 40, mas que ouviu essa proposta quando tinha apenas oito anos de idade. Ela também não prestou queixa pois era vulnerável, e demorou anos para elaborar o que aconteceu. “Uma sociedade que ensina para o garoto que ele tem que ser o garanhão e fazer sexo com muitas mulheres, e, ao mesmo tempo, ensina para a garota que se ela fizer o mesmo, ela é vadia, está ensinando que, para fazer sexo, tem que ser à força”, afirmou Viviana Santiago, especialista de gênero da Plan International Brasil. “Ou seja, estamos educando as crianças sob a ótica do estupro”.
A Plan International, ONG global voltada para os direitos da infância, lançou, na mesma noite da estreia do filme a campanha Quanto custa a violência sexual contra as meninas?. O projeto pretende promover o debate sobre a violência sexual contra as meninas e mulheres brasileiras. A ONG levará a exibição de India’s Daughter para outras cidades do país, como parte da campanha. As próximas exibições podem ser acompanhadas pelo Facebook da campanha.
Contramão
Enquanto algumas Organizações Não-Governamentais tomam a frente do debate sobre a violência de gênero, o Legislativo brasileiro, mais uma vez, anda para trás neste debate. Está em tramitação na Câmara dos Deputados um projeto de lei que visa restringir drasticamente o atendimento do Sistema Único de Saúde às mulheres vítimas de violência sexual.
O Projeto de Lei 5069/2013 prevê que as vítimas de estupro só poderão receber atendimento hospitalar após a realização de um exame de corpo de delito, realizado pelo Instituto Médico Legal, depois de terem registrado queixa na polícia. Além disso só considera violência sexual os casos que resultam em danos físicos e psicológicos. Hoje, a lei brasileira considera violência sexual qualquer forma de atividade sexual não consentida.
Além disso, a proposta remove do atendimento de saúde os tratamentos preventivos como a pílula do dia seguinte e o coquetel anti-HIV, o fornecimento de informações às vítimas sobre os direitos legais e todos os serviços sanitários disponíveis a ela. No Brasil, casos de estupros são um dos poucos em que o aborto é permitido por lei. O projeto em questão acaba com esse direito, com o argumento de que pretende “refrear a prática do aborto, que vem sendo perpetrado sob os auspícios de artimanhas jurídicas, em desrespeito da vontade amplamente majoritária do povo brasileiro”.
De autoria do presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), Isaias Silvestre (PSB-MG), Rodrigo Maia (DEM-RJ), Padre Tom (PT-RO) e outros dez deputados, o PL pode ser votado nesta terça-feira na Comissão de Constituição de Justiça e de Cidadania. Se passar, vai a plenário para votação.
Acesse no site de origem: Na Câmara, projeto de lei marca retrocesso no atendimento às vítimas de abuso sexual (El País, 21/09/2015)