Na perigosa rota da imigração, mulheres sofrem abusos sexuais e violência

11 de janeiro, 2016

(UOL Notícias Internacional, 11/01/2016) Uma mulher síria que se juntou ao fluxo de migrantes para a Alemanha foi obrigada a pagar as dívidas do marido aos contrabandistas oferecendo sexo ao longo do caminho. Outra foi espancada por um guarda de prisão húngaro até ficar inconsciente, depois de recusar seus avanços.

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Uma terceira, ex-maquiadora, vestiu-se de homem e parou de tomar banho para afastar os homens do seu grupo de refugiados. Agora, num abrigo de emergência em Berlim, ela ainda dorme de roupa e, como muitas mulheres aqui, empurra um armário para a frente da porta à noite.

“Não tem trinco nem chave, nem nada”, disse Esraa al-Horani, a maquiadora, e uma das poucas mulheres aqui que não têm medo de dizer seu nome. Horani diz que tem tido sorte: “eu fui espancada e roubada”.

A guerra e a violência em seu país de origem, contrabandistas exploradores e mares perigosos ao longo do caminho, uma recepção e um futuro incertos em um continente estrangeiro –estes são alguns dos riscos enfrentados pelas dezenas de milhares de imigrantes que continuam a chegar à Europa, vindos do Oriente Médio e outros lugares. Mas a cada passo do caminho, os perigos são ainda maiores para as mulheres.

Entrevistas com dezenas de imigrantes, assistentes sociais e psicólogos que cuidam de recém-chegados traumatizados em toda a Alemanha sugerem que a migração em massa atual tem sido acompanhada por uma onda de violência contra as mulheres. De casamentos forçados e tráfico sexual até a violência doméstica, as mulheres relatam casos de violência por parte de outros refugiados, contrabandistas, familiares do sexo masculino e até de policiais europeus. Não existem estatísticas confiáveis sobre o abuso sexual e de outros tipos contra as mulheres refugiadas.

Mais de um milhão de imigrantes entraram na Europa no ano passado, fugindo da guerra e da pobreza no Oriente Médio e outros lugares. Entre eles, os homens superam as mulheres em mais de três para um, segundo estatísticas da ONU. “Os homens dominam, numericamente e de outras formas”, diz Heike Rabe, especialista em gênero para o Instituto Alemão de Direitos Humanos.

Susanne Hohne, psicoterapeuta chefe de um centro de Berlim especializado no tratamento de mulheres imigrantes traumatizadas, diz que quase todas as 44 mulheres sob seus cuidados –algumas ainda nem adultas, outras com mais de 60 anos– foram vítimas de violência sexual. “Nós mesmos vamos ao terapeuta para supervisão duas vezes por mês para lidar com tudo o que ouvimos”, disse Hohne sobre seus 18 funcionários. Juntos, eles fornecem duas sessões semanais de terapia para cada mulher e até sete horas de assistência social, incluindo visitas domiciliares, para ajudá-las com adaptação à vida na Alemanha.

Na Grécia, um dos principais pontos de entrada de imigrantes na Europa, os centros de acolhimento costumam estar superlotados e falta iluminação adequada e espaços separados para mulheres solteiras, disse William Spindler, da agência de refugiados da ONU. “Homens, mulheres e crianças dormem nas mesmas áreas”, disse ele. Em toda a Europa, “casos de violência sexual e violência familiar têm sido relatados para nossa equipe de campo”, acrescentou ele.

Mesmo na relativa segurança da Alemanha, o sistema de asilo tem dificuldades logísticas para acomodar perto de um milhão de imigrantes em 2015 e vem fazendo cortes no que diz respeito à segurança básica para mulheres, como quartos e banheiros com chave.

“A prioridade tem sido evitar a falta de moradia”, disse Rabe, a especialista alemã em violência de gênero. “Mas um ambiente que facilite inadvertidamente a violência é um fator de risco. Não podemos permitir que o padrão caia.”

Isso é mais fácil dizer do que fazer, disse Jan Schebaum, que administra duas casas para requerentes de asilo no leste de Berlim. Há dois banheiros por andar, e os quartos estão lotados.

Uma das casas que ele administra é o abrigo de emergência onde a maquiadora Horani vive. Dos 120 adultos que estão lá, a maioria é síria e afegã, e 80 são homens.

“As mulheres estão à sombra dos homens”, disse Schebaum. “Suas vozes são sufocadas, e isso é um problema.”

No balcão da cozinha, onde voluntários distribuem sopa quente e frutas frescas, as mulheres são muitas vezes as últimas da fila. Elas ficam muito tempo em seus quartos e raramente se inscrevem nas atividades anunciadas no quadro de avisos, como visitas a museus ou concertos. Uma mulher síria não deixou o prédio desde que está lá, há dois meses, porque seu marido, que ainda não chegou à Alemanha, proibiu-a de fazê-lo.

Na lavanderia, histórias de abuso doméstico circulam em conversas sussurradas entre as mulheres. Um marido ciumento e violento do quarto andar tem batido na mulher. Outra mulher tem apanhado do marido porque eles não podem ter filhos. Alguns meses atrás, dois homens afegãos assediaram uma menina afegã com comentários obscenos e a empurraram da bicicleta antes que outros interviessem, disse um voluntário do abrigo. Mas poucos incidentes de violência são denunciados.

Agora há uma noite de tricô e uma aula de aeróbica só para mulheres. Nas manhãs de quarta-feira, pequenos grupos de mulheres vão para a casa de uma voluntária para tomar banho, pintar as unhas e cuidar da aparência.

Uma tarde por semana, as assistentes sociais levam as mulheres imigrantes para uma cafeteria do outro lado da rua para a “hora do café”. As paredes estão cobertas de pichações e o lugar cheira a fumaça. Mas não importa. Quando Horani chegou com uma grande variedade de música árabe em seu smartphone, o interior desarrumado do café foi transformado num mar de lenços de cabeça balançando com a dança.

Enquanto algumas mulheres pintavam as mãos com henna e outras compartilhavam suas frustrações sobre o tempo que leva para obter o status de refugiado, Samar, 25, uma ex-funcionária do Ministério das Finanças da Síria, se abriu sobre como é estressante ser uma mulher em fuga. Depois de ter a casa bombardeada em Darayya, um subúrbio de Damasco que se tornou conhecido pelos protestos contra o governo no início da guerra civil, Samar passou 14 meses viajando sozinha com suas três filhas, de dois, oito e 13 anos.

“Eu não as perdia de vista por um minuto”, disse ela em árabe, falando através de um intérprete. Ela e outras mães solteiras dormiam em turnos ao longo do caminho, olhando as filhas umas das outras.

Mas, em Izmir, na Turquia, quando estava prestes a pegar um barco para a Grécia, Samar foi assaltada e ficou sem dinheiro para pagar o contrabandista. Um homem atarracado que se chamava Omar se ofereceu para levá-la de graça, mas só se ela fizesse sexo com ele. Samar já o tinha ouvido antes, à noite, no albergue onde ela e outras mulheres refugiadas estavam hospedadas, “indo de um quarto para outro”.

“Todo mundo sabe que existem duas maneiras de pagar os contrabandistas”, disse ela. “Com dinheiro ou com o corpo.”

Mas ela se recusou, e Omar ficou irritado. Naquela noite, ele invadiu o quarto de Samar, fez ameaças a ela e às filhas antes que o grito dela o afugentasse. Samar permaneceu na Turquia por quase um ano para trabalhar e poupar os 4.000 euros necessários para o restante da viagem.

Sentada com sua filha mais nova aninhada no colo, Samar concluiu: “quase todos os homens do mundo são ruins”.

Do outro lado da cidade, no oeste de Berlim, Hohne foi compreensiva, mas mostrou uma visão com mais nuances. Não há soluções fáceis, disse ela. Os abrigos só para mulheres não são uma opção, porque a maioria das famílias quer ficar unida. Algumas mulheres dependem dos homens para proteção. E, acrescentou, “não devemos esquecer que muitos dos homens também estão traumatizados.”

“Não existe o preto e o branco, o bem e o mal”, disse ela. “Se quisermos ajudar as mulheres, também precisamos ajudar os homens.”

Conteúdo The New York Times

Katrin Bennhold
Em Berlim (Alemanha)

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