Na rota da migração, mulheres se tornam presas fáceis

17 de janeiro, 2016

(O Globo, 17/01/2016) Estupros, agressões e abusos revelam panorama sombrio de refugiadas

Uma mulher síria que se uniu aos inúmeros refugiados que chegaram à Alemanha foi forçada a pagar a dívida do marido com os traficantes colocando-se à disposição deles para fazer sexo ao longo do caminho. Outra foi espancada até desmaiar por um guarda húngaro, depois de se negar a ceder a seus avanços. Uma terceira, que trabalhava como maquiadora, se vestiu de homem e parou de tomar banho para afastar os homens do seu grupo de refugiados. Agora, em um abrigo emergencial em Berlim, ela ainda dorme vestida e, como muitas outras mulheres no abrigo, bloqueia a porta do quarto com um armário todas as noites.

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“Aqui não há fechaduras nem cadeados”, contou Esraa al-Horani, a maquiadora e uma das poucas mulheres do abrigo que não tinham medo de revelar o próprio nome. Ela teve sorte, afirmou Esraa: só foi espancada e roubada.

A guerra e a violência em sua terra natal, os traficantes e os mares perigosos no meio do caminho, sem falar na recepção e no futuro incerto em um continente estrangeiro – são alguns dos riscos enfrentados pelas dezenas de milhares de migrantes que continuam a caminhar em direção à Europa vindos do Oriente Médio e além. Mas a cada parada no caminho, os perigos se tornam maiores para as mulheres.

Entrevistas com inúmeros migrantes, assistentes sociais e psicólogos que cuidam dos traumatizados recém-chegados em toda a Alemanha sugerem que a atual migração em massa foi acompanhada por um aumento drástico na violência contra as mulheres. De casamentos forçados e tráfico sexual à violência doméstica, as mulheres relatam a violência de refugiados, traficantes, homens da família e até de policiais europeus. Não existem estatísticas confiáveis sobre a violência sexual e outros tipos de violência contra as refugiadas.

Entre os mais de um milhão de imigrantes que chegaram à Europa no ano passado, fugindo da guerra e da pobreza no Oriente Médio e além, mais de 75 por cento dos recém-chegados são homens, de acordo com estatísticas da ONU. “Os homens dominam numérica e socialmente”, afirmou Heike Rabe, especialista em gênero do Instituto Alemão de Direitos Humanos.

Susanne Hohne, principal psicoterapeuta do centro berlinense especializado em tratar mulheres traumatizadas durante a imigração, afirmou que quase todas as 44 mulheres que estão sob seus cuidados – entre as quais algumas que acabam de chegar à idade adulta, outras com mais de 60 anos – sofreram algum tipo de violência sexual. “Fazemos supervisão com nossos terapeutas duas vezes ao mês para podermos lidar com todas as histórias que ouvimos”, afirmou Susanne a respeito de sua equipe de 18 especialistas. Juntos, eles fornecem duas sessões de terapia por semana para cada mulher e mais de sete horas de serviço social, incluindo visitas domiciliares para ajudá-las a se adaptarem à vida na Alemanha.

Na Grécia, um dos principais pontos de entrada de migrantes na Europa, os centros de recepção quase sempre estão superlotados, não contam com iluminação adequada nem com espaços separados para mulheres solteiras, afirmou William Spindler, da agência de refugiados da ONU. “Homens, mulheres e crianças dormem nas mesmas áreas”, afirmou. Em toda a Europa, acrescentou, “inúmeros casos de violência sexual e violência familiar foram relatados às nossas equipes”.

Até mesmo na relativa segurança da Alemanha, o sistema enfrenta dificuldades para lidar com a logística de acomodação de quase um milhão de imigrantes em 2015, o que acaba por afetar as medidas básicas de proteção para as mulheres, como a garantia de quartos e banheiros com fechadura.

“A prioridade é evitar que essas pessoas acabem nas ruas. Mas um ambiente que facilita a violência contra a mulher é um fator de risco. Não podemos permitir que os padrões sejam deixados de lado”, afirmou Heike, a especialista alemã em violência de gênero.

Mas isso não é tão simples, afirmou Jan Schebaum, gestor de duas casas para exilados na zona leste de Berlim. Existem apenas dois banheiros por andar e os quartos estão cheios.

Em uma dessas casas fica o abrigo emergencial onde Esraa, a maquiadora, está alojada. Dos 120 adultos no local – em sua maioria de origem síria e afegã –, 80 são homens.

“As mulheres são dominadas pelos homens. Suas vozes são caladas e isso é um problema”, afirmou Schebaum.

Nas filas de alimentação, onde os voluntários oferecem sopa quente e frutas frescas, as mulheres costumam ser as últimas da fila. Elas passam boa parte do tempo dentro dos quartos e raramente participam das atividades oferecidas, como visitas a museus e shows. Uma mulher síria não deixou o prédio desde que chegou há dois meses, porque seu marido – que ainda não chegou à Alemanha – a proibiu de sair.

Na lavanderia, histórias de abuso doméstico circulam em conversas discretas entre as mulheres. No quarto andar há uma marido violentamente ciumento que bateu várias vezes na esposa. Há também uma mulher que apanhou do marido porque eles não conseguem ter filhos. Há alguns meses, dois homens afegãos assediaram uma menina afegã com comentários sexuais e a derrubaram de uma bicicleta antes que outras pessoas interferissem, de acordo com um voluntário. Contudo, poucos incidentes de violência são reportados.

Agora existe uma noite de bordado e uma aula de aeróbica só para as mulheres. Nas quartas de manhã, pequenos grupos de mulheres vão à casa de uma voluntária para tomar banho, fazer as unhas e arrumar os cabelos.

Uma vez por semana, assistentes sociais levam as migrantes para um café do outro lado da rua. As paredes estão cobertas de pichações, o ar cheira a cigarro. Mas não importa. Quando Esraa chegou com várias músicas árabes no telefone, o interior se transformou em um mar de mulheres dançando com seus véus.

Enquanto algumas pintavam as mãos com hena e outras conversavam sobre como estavam frustradas com a demora para conseguir o visto de refugiadas, Samar, uma ex-funcionária de 35 anos do ministério da Fazenda da Síria comentou sobre as dificuldades de ser uma mulher em fuga. Depois de ter sua casa bombardeada em Darayya, um subúrbio de Damasco que no início do conflito ficou conhecido pelos protestos contra o governo, Samar passou 14 meses sozinha com as três filhas de 2, 8 e 13 anos.

“Não deixei que elas saíssem da minha vista por um segundo”, contou em árabe, com a ajuda de uma intérprete. Ela e outras mães solteiras dormiam em turnos durante a viagem, vigiando as filhas e as companheiras.

Mas em Izmir, na Turquia, pouco antes de embarcar para a Grécia, Samar foi roubada e ficou sem dinheiro para pagar ao traficante. O homem atarracado que dizia se chamar Omar se ofereceu para levá-las de graça, desde que fizesse sexo com ele. Ela havia ouvido o homem na noite anterior, no albergue onde estava com outras refugiadas, “indo de um quarto ao outro”.

“Todo mundo sabe que existem duas formas de pagar os traficantes: com dinheiro, ou com seu corpo.”

Mas ela se negou e Omar ficou nervoso. Naquela noite, ele invadiu o quarto de Samar, ameaçando a ela e às filhas antes que seus gritos o afastassem. Samar ficou na Turquia por quase um ano trabalhando para economizar os quatro mil euros necessários para o restante da jornada.

Sentada com a filha mais nova no colo, concluiu: “Quase todos os homens do mundo são ruins”.

Do outro lado da cidade, na zona oeste de Berlim, Susanne entendia seu ponto de vista, mas oferecia uma visão mais ponderada. Não existem soluções fáceis, afirmou. Abrigos só para mulheres não são uma opção viável, já que a maioria das famílias não deseja se separar. Algumas mulheres contam com a proteção dos homens e, além disso, “não podemos nos esquecer que muitos desses homens também estão traumatizados”.

“Não é uma questão de bem e mal. Se quisermos ajudar as mulheres, também precisamos ajudar os homens.”

Katrin Bennhold, do ‘New York Times’

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