(Folha de S.Paulo) Mesmo para alguém familiarizado com o doentio repertório de abusos e atrocidades cometidos pelo ditador líbio Muammar Gaddafi em seus 42 anos no poder, o novo livro da jornalista francesa Annick Cojean é um soco no estômago.
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Em “O Harém de Kadafi”, que está sendo lançado no Brasil (ed. Verus), Cojean dá voz a Soraya, que conheceu por acaso nas ruas de Trípoli pouco após a morte do ditador, em outubro de 2011.
Escolhida numa visita de Gaddafi a sua escola quando tinha 15 anos, Soraya foi mantida até os 20 nos porões da fortaleza de Bab al Azizia, em Trípoli, sofrendo estupros diários e todo tipo de violência, para satisfazer o insaciável apetite sexual do ditador.
O detalhado e arrepiante relato de Soraya abriu para a repórter francesa o mundo oculto de perversões que vitimou centenas, talvez milhares de outras mulheres.
E revelou o segredo mais escondido do regime: na Líbia de Gaddafi, a violência sexual era arma de poder a serviço de um governo baseado no estupro e na coação.
Embalado por álcool e drogas, Gaddafi preferia virgens em suas orgias seguidas de cerimônias de magia negra, mas o sexo também era usado para humilhar desafetos e mantê-los sob controle.
Gostava de atrair filhas e mulheres de homens poderosos, forçou ministros a fazer sexo com ele e seduzia com joias e dinheiro mulheres de líderes africanos.
Em entrevista à Folha por telefone, de Paris, a repórter do diário “Le Monde” reviveu as histórias de horror das escravizadas por Gaddafi, refletiu sobre o silêncio coletivo que o manteve impune e confessou: “Foi a reportagem mais dolorosa que já fiz”.
Folha – Seu livro descreve um verdadeiro sistema a serviço das perversões sexuais de Gaddafi. Como ele funcionava?
Annick Cojean – Gaddafi tinha muitos cúmplices que mantiveram esse sistema funcionando, trazendo mulheres para ele, na maioria muito jovens: 14, 15 e 16 anos.
Gaddafi aproveitava qualquer situação para conhecer meninas. Visitava escolas, universidades, ia a casamentos, festas particulares, encontros da Guarda Revolucionária. Ele criou um sistema em que elas eram convidadas a Bab al Azizia [a fortaleza em que ele vivia]. Meninas eram chamadas se tivessem algum problema, ou se um membro de sua família tivesse problemas. Havia todo tipo de desculpa para levá-las.
E há exemplos como o de Soraya. Gaddafi visitou sua escola e colocou a mão sobre a cabeça da menina. Esse era o sinal para seus guarda-costas de que ele a queria.
Gaddafi também dedicava grande parte de seu tempo a ver álbuns e filmes de casamento e de festas particulares para escolher meninas.
A maioria das meninas era virgem e entrava em estado de choque quando ele tentava fazer sexo com elas. As que colaboravam eram premiadas, geralmente com dinheiro e presentes.
Mas a maioria era estuprada e ficava profundamente traumatizada. Algumas eram levadas por uma semana, outras, por anos. Com Soraya, durou cinco anos; outra delas ficou mais de 30 anos. A partir do momento em que eram levadas, não tinham mais futuro. Haviam perdido a virgindade, e as famílias não as aceitavam de volta.
Com Soraya eu entendi como funcionava o sistema de escravas sexuais de Gaddafi e como era a vida em Bab al Azizia. Mas o que eu descobri depois em minha investigação foi além: além da perversão e do louco apetite sexual de Gaddafi, havia algo mais.
Sexo e estupro era seu modo de governar a Líbia. Foi chocante para mim. Eu sabia que na guerra civil o estupro fora usado como arma, com o incentivo e o planejamento de Gaddafi. Porém muito antes da guerra, e isso era totalmente secreto, estupro e sexo eram usados como forma de governar, de dominar.
A violência sexual era usada também por seus aliados?
Claro. Ele corrompeu a sociedade. Era uma corrupção moral e sexual. Os primos de Gaddafi e a alta cúpula do governo e do Exército tinham esse tipo de comportamento, mas sem o poder dele.
O sexo era usado por Gaddafi para punir e para premiar. Podia ser um líder tribal ou um ministro. Quando ele queria humilhar alguém, a melhor forma era fazendo sexo com sua mulher ou filha, às vezes ambas. Ele também fez sexo com ministros, para mantê-los sob seu domínio.
O mais incrível é que o silêncio em torno do assunto foi preservado. O tema seria sensível em qualquer sociedade, mas especialmente na Líbia, um país extremamente conservador e onde as pessoas não podiam contar o que passaram. O silêncio era o maior aliado de Gaddafi.
Ele usava as conferências de líderes na Líbia para caçar primeiras-damas. Para seduzi-las, oferecia fortunas em dinheiro e joias.
As meninas que ele atraía tinham algo em comum? Classe social, aparência física, origem, idade?
Não. Havia meninas pobres e ricas. Ele procurava meninas bonitas, mas precisava de duas por dia, então podiam ser de qualquer lugar. Ele preferia as virgens. Isso tinha a ver com cerimônias de magia negra, em que usava o sangue de virgens.
Mabruka Sharif, uma das mulheres mais próximas de Gaddafi e de fato a chefe do harém, que eles chamavam de “serviço especial”, era adepta de magia negra. Ela ia a países africanos para convidar feiticeiros à Líbia. No momento em que essas meninas encontravam Mabruka, suas vidas estavam destruídas.
Como a sra. convenceu essas meninas a falar?
O meu objetivo era ajudar essas meninas a contar suas histórias, e tive a ajuda de líbios para convencê-las.
Com Soraya, surpreendentemente, não foi complicado. Encontrei-a por acaso, poucos dias após a morte de Gaddafi, e ela estava com raiva e queria que sua história se tornasse conhecida. Ela gostaria de ficar na Líbia, mas percebeu que, mesmo após a morte de Gaddafi, será difícil ter um futuro no país. E isso é extremamente injusto.
Já as outras estavam com muito medo de falar. É realmente uma questão de vida ou morte. O perigo vem de todo lado. São ameaçadas de sofrer o chamado “crime de honra” [justiçamento, geralmente feito pela própria família, para punir uma mulher que cometeu atos considerados imorais], ainda comum na Líbia, pelos gaddafistas, pelos salafistas [muçulmanos ultraconservadores] e também por alguns revolucionários, que as consideram prostitutas de Gaddafi que usufruíram do antigo regime.
Por isso escrevi o livro. Se a Líbia quer ter um futuro, precisa encarar seu passado. Para a situação das mulheres, a revolução não ajudou em nada. Centenas de mulheres foram levadas por Gaddafi e mantidas [como escravas]. Suas vidas foram completamente destruídas. Acho que milhares de mulheres foram violentadas por Gaddafi. E elas sofrem por isso até hoje.
Milhares?
Acho que sim. É impossível saber o número, mas ele ficou 42 anos no poder, e isso teve início quando ele assumiu. Levava mulheres de soldados à fortaleza e as violentava.
O famoso corpo de guarda-costas todo formado de mulheres era uma farsa? As “amazonas de Gaddafi” eram na verdade escravas sexuais?
Muitas eram. Algumas se formaram na academia militar, outras na escola de polícia. Mas a maioria era escrava sexual. Exatamente como Soraya, que dois dias após encontrar Gaddafi foi obrigada a vestir farda e integrar a equipe de guarda-costas.
Acesse em pdf: Violência sexual era usada como arma de poder por Gaddafi (Folha de S. Paulo – 05/11/2012)