(O Globo) O caso da jovem de 23 anos estuprada no mês passado por um grupo de homens em Nova Délhi, capital da Índia, provocou o devido horror mundial. Talvez pelos detalhes da rotina do cotidiano em que ocorreu, tão familiar ao cidadão urbano de qualquer parte do mundo: a jovem voltava de uma sessão de cinema (“As aventuras de Pi”); estava acompanhada do companheiro com quem casaria em fevereiro próximo; e encontrava-se dentro de um ônibus quando teve o corpo devassado pelos seis atacantes, entre os quais o motorista.
Como se sabe, depois de brutalizada, foi espancada com barra de ferro e despejada com o namorado perto de uma via expressa da cidade. Não resistiu às lesões e morreu treze dias depois.
A bestialidade do ato desencadeou algo tão imprevisível para o Ocidente quanto os surtos iniciais da chamada Primavera Árabe, na Tunísia e no Egito: a Índia saiu às ruas. Homens e mulheres, jovens e adultos, autoridades e anônimos passaram a exigir mudanças na cultura de violência sexual do país. Repita-se: homens, muitos, inúmeros homens se juntaram às gigantescas manifestações de protesto.
Paralelamente, foi sendo construído por parte da mídia ocidental o retrato de uma nação de hienas predatórias onde o estupro seria a norma. As estatísticas citadas são, sem dúvida, eloquentes: em Nova Délhi uma mulher é estuprada a cada 14 horas, totalizando 625 casos somente em 2012. E apenas um em cada quatro acusados foi julgado e condenado.
Só que esses números, quando comparados a alguns dados referentes à Inglaterra e aos Estados Unidos, não são diferentes assim. A região metropolitana de Nova Délhi tem cerca de 18 milhões de habitantes. A população da Inglaterra e do País de Gales somados é 3,5 vezes maior, mas o número de estupros supera em quatro vezes o da capital indiana. Segundo artigo publicado no “The Guardian” pela pesquisadora Emer O´Toole, da Universidade de Londres, eles somam 9.509 casos.
Como na Índia, também nos Estados Unidos apenas um quarto dos casos de estupro denunciados resulta na prisão do acusado. É americano o ex-deputado republicano Todd Akin, que conseguiu se eleger seis vezes e integrar a Comissão de Ciências do Congresso montado em ideias medievais sobre a condição feminina. Em novembro último, ao tentar uma vaga no Senado, defendeu sua oposição a qualquer tipo de aborto com a afirmação de que “os casos de gravidez depois de um estupro são muito raros”. Esclareceu: “Se for um estupro de verdade, o corpo da mulher tenta por todos os meios bloquear a gravidez.”
Cabe, portanto, um corte para a noite de 11 de agosto do ano passado – quatro meses antes do horror em Nova Délhi. A cidade americana de Steubenville, esquecida às margens do Rio Ohio, preparava-se para um de seus poucos folguedos anuais: a tradicional comemoração do final do verão no Hemisfério Norte, regada a festas simultâneas em várias casas da localidade.
Com menos de 19 mil habitantes, população equivalente à de Búzios fora de temporada, a decadente Steubenville já conheceu tempos mais prósperos. Quatro décadas atrás, quando portava o apelido de Sin City (Cidade do Pecado), vivia da siderurgia, da jogatina e da prostituição. Veio o declínio da indústria e sobrou-lhe como único orgulho o time local de futebol americano. Tudo, em Steubenville, gira em torno da equipe do Big Red, que já abocanhou nove títulos estaduais e foi finalista nacional em 2006. Quem veste a camisa do time é herói local. Virtualmente intocável.
Na noite daquele 11 de agosto, uma adolescente de 16 anos, de uma cidade vizinha, foi até Steubenville participar da série de baladas. A partir daí, fatos e boatos, informações sólidas e acusações sem provas se misturam. O que se sabe de concreto, até agora, é que a jovem, totalmente embriagada e inconsciente, tornou-se brinquedo sexual nas mãos de um grupo de jovens ligados ao time.
As informações recolhidas até agora indicam que ela pode ter sido violentada em três casas diferentes. Foi carregada de uma a outra pelas canelas e punhos, feito saco de batata. No caminho da primeira para a segunda festa, sempre inerte, também foi sodomizada no banco traseiro do carro. Ao final da noitada, foi depositada sem maiores cerimônias no gramado da casa em que mora.
Coube a uma frequentadora fuinha de redes sociais fazer o papel desempenhado de multidão indiana. Pôs a boca no mundo. Alexandra Goddard, de 45 anos, ex-moradora de Steubenville, navegava pela internet quando se deparou com posts no Twitter, vídeos no YouTube e fotos no Instagram que mostravam, em tempo real, o que ocorria com a jovem.
A maior parte foi deletada no dia seguinte, mas a blogueira conseguiu capturar o que ainda restava da trilha de vestígios deixada na rede – e transformou-se em justiceira moral do caso, atropelando a investigação criminal. Apesar da apreensão de 15 celulares e 2 iPads, as autoridades locais obtiveram escasso material testemunhal da comunidade.
O caso permaneceu restrito aos 26,5 quilômetros quadrados de Steubenville e ao blog de Goddard por quatro longos meses. Só ganhou dimensão nacional em dezembro, com uma longa reportagem publicada no “New York Times”, seguida da entrada em cena do coletivo de hackers Anonymous e outros grupos de ciberativistas, que incendeiam a rede com acusações nem sempre confiáveis. Já estão sendo chamados de “terroristas” e de “ameaça à ordem pública” pelas autoridades da cidade.
Apenas dois atletas do Big Red, ambos de 16 anos, serão julgados por uma corte juvenil no próximo dia 13 de fevereiro.
“Se você pudesse indiciar alguém por não ser uma pessoa decente, muitos seriam acusados por aquela noite. Mas isso não é possível”, diz o chefe de polícia local, Fred Abdalla, ao constatar que nenhum jovem ou adulto presente às festas teve a preocupação moral de dizer “Peraí, isso não está certo”.
Como se vê, em matéria de cultura do estupro, as fronteiras são bem maiores do que a Índia.
*Dorrit Harazim é jornalista
Acesse em pdf: Notícias de um estupro em país desenvolvido, por Dorrit Harazim (O Globo – 13/01/2013)