(O Estado de S. Paulo) Há exatos 40 anos, o médico americano Fred Mecklenburg sustentou que a gravidez em caso de estupro seria um acontecimento raro na ciência. Inspirado em experimentos nazistas que demonstravam a interrupção da ovulação após a experiência de um trauma, Mecklenburg concluiu que, sendo o estupro um trauma, não haveria ovulação.
Portanto, mulheres traumatizadas pelo estupro não engravidariam. O argumento, simples e circular, soa como boa ciência. Mas, antes de qualificar como escandalosa a tese de Mecklenburg e seu mais recente seguidor, o candidato a senador pelo Estado do Missouri, nos Estados Unidos, Todd Akin, vale entender o silogismo que há por trás do raciocínio: “O estupro é um trauma; um trauma impede a ovulação; no estupro, não há ovulação”. O fantasma por trás do silogismo é o aborto, um tema capaz de alterar os rumos da corrida política nos Estados Unidos. Sem ovulação, não há por que falar no direito ao aborto em caso de estupro.
Imagino Aristóteles lendo o silogismo que inspirou a infame declaração do candidato republicano: “O corpo da mulher tem um jeito de fechar tudo no caso de estupros legítimos”. Diz a regra que um silogismo se baseia em duas proposições e uma conclusão. A conclusão é verdadeira se as proposições também o forem. É nesse ponto da análise que a tese antiaborto é lógica, porém falsa. Não há quem discorde da afirmação de que “um estupro é um trauma”. Mesmo o candidato Akin está de acordo. Trauma, violência, medo são algumas das expressões com as quais as sobreviventes de um estupro descrevem sua existência. A segunda parte do silogismo, “um trauma impede a ovulação”, é a que merece mais atenção. Existem estudos com animais não humanos, em particular com ratas, que mostram a interrupção da ovulação em situações de profundo estresse. É razoável imaginar que o mesmo ocorra entre as mulheres. Mas a infecundidade seria após o trauma, e não retroativa ao estupro. O candidato Akin se esqueceu de considerar a hipótese de a mulher já estar ovulando quando for vítima do estupro. Ou seja, a proposição pode ser verdadeira, porém não é válida para todas as mulheres. O mais correto seria dizer que um trauma pode impedir a ovulação, mas o modalizador fragilizaria a moral do silogismo. Por fim, a conclusão “no estupro não há ovulação” é um verdadeiro ardil pelo que esconde: se houver ovulação, é porque não foi um estupro legítimo, repetindo as palavras do candidato.
Por que qualificar um estupro? “Verdadeiro” ou “legítimo”, os adjetivos utilizados pelo criador e pelo seguidor da tese de que “um estupro raramente leva a uma gravidez”, não são deslizes de oratória, mas fundamentos do argumento. Mecklenburg e Akin acreditam ter encontrado um mecanismo pericial para julgar a honestidade das mulheres quando narram um estupro. O grupo pensa ter encurralado a estratégia dessas mulheres: se o sexo for traumático, portanto, um estupro legítimo, não haverá gravidez, pois o corpo será responsável por expulsar naturalmente o que for indesejado, caso não tenha havido a interrupção da ovulação. Há uma confusão fisiológica nos argumentos sobre como seria feita essa expulsão natural – os livros de ginecologia não possuem um capítulo sobre tal expulsão ou mesmo uma expressão para descrever como se daria essa força espontânea dos úteros. A verdade é que a tese ficou mesmo no campo da moral: a mulher traumatizada não ovularia porque rejeitaria seu corpo. E, se ovulasse, o corpo expulsaria “a coisa toda”, nas palavras de Akin. Seria a potência moral pela repulsa do sexo não consentido que impediria a gravidez em uma mulher violentada.
Parece que o candidato Akin tentou se desculpar pelas declarações, mas ele não está sozinho na crença de que as mulheres são mentirosas e o estupro é uma fantasia para encobrir prazeres sexuais. Além de ultrajante, o argumento é perturbador pelo uso da lógica científica para fundamentar uma moral sexista e patriarcal. Lembro o quanto a imagem de mulheres mentirosas inspira a fantasia desses homens: em vez de vítimas de uma violência, as mulheres seriam seres levianos que, após uma relação sexual consentida e desprotegida, buscariam um serviço de saúde para realizar um aborto.
A verdade é que não precisamos de evidências científicas para nos aproximarmos da dor das mulheres que sobreviveram a um estupro – basta sermos sensíveis e cultivarmos a solidariedade. O reconhecimento do direito ao aborto nesse caso é um ato humanitário de proteção e cuidado. Mas a voz desse tipo de ciência torna o debate nebuloso e o desloca do campo das crenças para o da razão pública, com o sério risco de transformar charlatanismo em política.
Acesse em pdf: Lógica abissal, por Debora Diniz (O Estado de S. Paulo – 26/08/2012)