(O Estado de S. Paulo) “Não tenho vergonha da minha história. Quero que ela sirva de esperança para as meninas que estão na vida e de alerta para que outras não acabem no mesmo lugar”, diz Shamere McKenzie, jamaicana que mora nos Estados Unidos desde criança e hoje tem seu nome na lista de delinquentes sexuais do Departamento de Justiça dos EUA. No site do FBI, sua foto está ao lado das de pedófilos e estupradores.
“A Organização Internacional do Trabalho fala em 12,3 milhões de pessoas traficadas no mundo inteiro. O lucro gerado é de US$ 31,7 bilhões por ano. Livre de impostos. Isso faz do tráfico de pessoas a terceira modalidade mais lucrativa do crime organizado internacional, atrás somente do tráfico de drogas e armas.”
“Shamere conheceu Corey “o Magnífico” Davis numa tarde, depois da aula. Ele era dez anos mais velho e tinha um Mercedes. Conversaram. Trocaram telefones. Namoraram. Um mês depois, ela trouxe sua cama do alojamento estudantil no Queens para o porão do apartamento dele no Bronx. Davis disse que podia ajudá-la a ganhar dinheiro para liquidar a dívida de US$ 3 mil com a faculdade. Só precisaria dançar.”
“Na primeira noite ela dançou num clube em New Jersey. Mais tarde, Davis a levou para um apartamento onde estavam seus amigos. Shamere se recusou a fazer o que um sujeito pedia. “Eu disse a ele que apenas ia dançar. Não queria me envolver com nada daquilo.” Davis puxou-a para um canto, encostou-a na parede e foi muito claro: “Faça o que eles querem ou não vai sair viva daqui”. Ela insistiu e apanhou. Ameaçou gritar e apanhou de novo. Ele agarrou seu pescoço e apertou. “Me chutava com suas botas Timberland. Eu desmaiei.” Horas depois, ela recuperou a consciência e se viu deitava numa poça de urina, sem saber de quem era.”
“Pelos 19 meses seguintes ela atendeu pelo nome de Barbie, apelido que ganhou por ser magra e alta. Era conhecida nos bares de strip em Nova York, Nova Jersey, Texas, Connecticut e Flórida. Fazia US$ 1 mil por noite, às vezes US$ 4 mil, e nunca viu um tostão. Se precisasse de um absorvente, era o Magnífico que comprava. Quando “a família” (como se chama o cafetão e seu harém) estava em Nova York, ela dormia na própria cama no porão do apartamento no Bronx. Havia outras garotas. Dormiam na cama de Davis, no sofá e no chão. Trinta foram e vieram enquanto Shamere esteve com ele. Asiáticas, brancas, negras, latinas. Algumas menores. “O único jeito de ir a um médico era se você tivesse uma ferida que precisasse dar ponto.”
“Na primeira vez que fugi, ele ligou no meu celular e ameaçou matar minha mãe. Eu voltei e fui sodomizada. Na segunda, também voltei e ele me bateu. Na terceira, não voltei mais.” A fuga definitiva veio em agosto de 2006. Depois disso, Corey Davis foi julgado e sentenciado a 24 anos por tráfico de mulheres e crianças para a prostituição; e Shamere caiu no radar do FBI e foi acusada de colaborar com Davis na transgressão do Mann Act, “por transporte de menores através das fronteiras estaduais americanas com propósito imoral”. Na hierarquia do empreendimento montado por Davis cabia a ela levar as garotas da casa para os clubes e trazê-las de volta no final do expediente. “Eu era a única com carteira de motorista.”
“Para tentar impedir a punição das vítimas, como aconteceu com Shamere e Tina, o governo americano criou 42 forças-tarefa regionais para formar policiais especializados em identificar e ajudar vítimas de tráfico humano. Em paralelo, o Departamento de Justiça passou a emitir, em 2001, um visto humanitário, o T-Visa (T para tráfico) para todo estrangeiro que foi atraído para o país com falsas promessas de emprego e uma vida melhor e acabou vítima de fraude, coação, abuso físico ou psicológico. O visto permite que a pessoa more e trabalhe legalmente nos EUA por pelo menos três anos”. Mas especialistas ouvidos pela reportagem dizem que as duas iniciativas têm tido resultados aquém do esperado. Apenas um décimo da quota de 5 mil vistos é distribuída anualmente e vítimas de tráfico humano continuam sendo presas e deportadas.”
“Uma vítima de tráfico humano é uma pessoa que passou um tempo confinada. Isolada do mundo. A elas é dito quando dormir, quando acordar, o que vestir, o que comer. De repente, você é resgatada e tem que tomar as próprias decisões. Uau, como isso é difícil”, explica Tina. “É um processo doloroso e, no meio de tudo isso, estamos exigindo que revelem para o mundo todas as humilhações por que passaram, pois há um julgamento chegando e elas devem estar bem para enfrentar os traficantes. A recuperação de um trauma como esses não vem de uma hora para outra. Pode levar uma vida toda.”
Shamere teve sorte. Escapou. Recebeu a ajuda de que precisava e agora é ativista pelo fim da escravidão moderna. Quer se tornar advogada de vítimas de tráfico humano.
Veja a reportagem completa: Nas garras do Magnífico (O Estado de S. Paulo – 27/11/2011)