(Folha de S.Paulo) Informação publicada em notas na coluna de Mônica Bergamo (30/05/2012):
SALTO
E aumentou o número de pessoas que procuraram o hospital Pérola Byington, na Bela Vista, se dizendo vítimas de abuso sexual. Entre 20 e 27 de maio, 47 pessoas foram atendidas – 23% a mais do que na semana anterior. Do total, 28 casos envolviam menores de 12 anos.
VITRINE
Daniela Pedrosa, psicóloga do Núcleo de Violência Sexual do hospital, diz que é comum haver um aumento nas ocorrências após exposição midiática do tema -como o depoimento de Xuxa ao “Fantástico”. Aconteceu em 2008, quando um pai de santo foi acusado de abuso contra garotos.
(Fantástico/Rede Globo) Em um dos casos mostrados pelo Fantástico, a mãe se omitiu. No outro, apoiou a filha abusada
A corajosa entrevista que Xuxa deu ao Fantástico, revelando que sofreu abuso sexual na infância, ajudou a pôr em discussão essa violência inaceitável. Depois da entrevista, as denúncias de casos de abuso aumentaram muito.
Vamos conhecer a história de duas jovens: a primeira rompeu o silêncio, mas não encontrou ajuda dentro de casa. Pelo contrário. A segunda, foi abusada pelo padrasto e tenta recomeçar a vida com o apoio da mãe.
No aconchego de casa, diante dos olhos da família, de onde menos se espera: “Não tem lugar, não tem forma, não tem nível social, lugar, hora, característica da pessoa. Não dá pra imaginar.”, diz Bárbara.
O abusador não poderia estar mais próximo: “Eu convivia com o meu pai. O perigo morava ao lado, no quarto ao lado”, conta.
Assista ao vídeo com alguns depoimentos de brasileiros sobre abusos na infância (Fantástico/Rede Globo – 27/05/2012)
Quem suspeitaria do pai, um advogado de prestígio, integrante da comissão de direitos humanos da OAB de uma rica cidade do interior paulista?
“Era sempre quando eu tava dormindo, era sempre de madrugada. Aí eu acordava, ele já tava com a mão nos lugares, assim, fazendo todas as coisas”, revela.
Começou aos sete anos de idade. Noites a fio: “No outro dia dava ‘bom dia, tudo bem com você?’. Sabe um negócio de louco? Você acha que é coisa de filme, que é surreal. Como assim? O que está acontecendo?”
Aos onze anos, achou que aquilo não era normal e procurou a mãe: “Falei pra ela: ‘Mãe, meu pai faz umas coisas estranhas comigo, ele vai à noite, ele fica passando a mão em mim’”.
“A minha mãe chorou muito, parecia que ela ia tomar alguma atitude”, lembra.
Mas em vez de enfrentar o marido, a mãe silenciou.
Eu falei: “Como assim? Minha mãe mentiu pra mim? Ela falou que ele ia parar e continuou. Por que?”
Aos 16 anos, ameaçou ir à delegacia. O pai se assustou: “Só parou quando eu enfrentei. Só. Senão teria continuado não sei até quando”.
Mas no ano passado, já com 19 anos, estudando Direito na Universidade, ela soube que o pai fazia o mesmo com o irmão menor e com uma tia mais jovem do que ela. Foi quando o denunciou à polícia.
“É preciso denunciar porque é a pior coisa que existe, abuso sexual contra criança, tirar inocência de criança. Não se faz isso”, diz.
Em vez de apoiá-la, a mãe, mais uma vez, ficou ao lado do marido: “Não dá pra entender a minha mãe. Sabe, o pior é que eu amo ela. Mas que amor é esse que ela tem pela gente que ela não faz nada?”
O pai, acusado de violência sexual, nega tudo. E diz que a filha inventou a história. Ele e a mãe, acusada de omissão, chegaram a ser levados ao presídio. A mãe conseguiu liberdade provisória.
O pai está em prisão domiciliar com autorização especial para trabalhar. A jovem não mora mais com eles. Do sofrimento acumulado veio a decisão de romper o silêncio.
“Não algo que você sai falando pra todo mundo. Menor de idade, com 15, 14 anos, não dá pra dizer: ‘sabe de uma coisa? O meu pai abusou sexualmente de mim’. Você não sai falando isso. Isso é uma coisa que você sente vergonha”, conta.
Ao revelar ao Fantástico, no domingo passado, o abuso sexual que sofreu, Xuxa trouxe à luz a angústia de quem passa por isso. No dia seguinte, o número de ligações para o disque 100, serviço do governo federal que recebe denúncias de violação aos direitos humanos, saltou dos habituais 80 mil para 112 mil telefonemas em um só dia. Um aumento de quase 50%. Em grande parte dos casos, a família demora a perceber que algo está errado.
O hospital Pérola Byington, de São Paulo, referência no atendimento de vítimas de violência sexual, registra de 12 a 14 casos por dia. A metade é de crianças e adolescentes.
Os registros do hospital mostram uma clara diferença entre a violência sexual sofrida por mulheres adultas e por crianças. No caso das mulheres, o agressor é um desconhecido que age em lugares públicos. No caso das crianças, o abuso acontece dentro de casa por pessoas que deveriam protegê-las.
Como então identificar quando isso ocorre? Para a equipe médica, mudanças bruscas de comportamento podem ser reflexo de violência sexual.
“Crianças que já tenham superado essa fase de desenvolvimento e voltam a fazer xixi na cama no período noturno, crianças que passam a ter um temor específico de ficar sozinhas com determinado adulto, crianças que por marcas da violência que possam ter vão utilizar roupas fechadas num período de calor, incompatível com aquele ambiente, enfim, a criança sempre dá o sinal de que algo não vai bem na vida dela”, diz Jefferson Drezett, médico.
Se soubesse disso antes, talvez esta mulher não estivesse tão martirizada por não perceber o sofrimento da filha: “Às vezes fico me perguntando se realmente é verdade o que eu estou vivendo. Sempre o que eu preservei na minha vida foi os meus filhos”.
Ela ficou sabendo há apenas um mês que a filha foi abusada e estuprada pelo padrasto durante nove anos.
“Nunca falei nada para ninguém”, diz Dalila, para em seguida explicar: “Por medo do que ele pudesse fazer. Ele falava assim: se você falar alguma coisa, se você abrir a boca, a primeira pessoa que vai é a sua mãe. Depois vão seus irmãos”.
Mês passado, em uma roda de amigas, ela finalmente resolveu contar: “Foi a primeira vez que eu consegui falar alguma coisa pra alguém”.
Uma das amigas fez a denúncia. Aos policiais, a jovem, que hoje tem 16 anos, disse ter sido abusada pela primeira vez aos sete.
“Dos 7 aos 10, ele ainda brincava. Aí, tipo, depois da primeira menstruação que acontecia mesmo o sexo em si”, diz Dalila.
“Depois dos 14 ele marcava dia na semana. Ele marcava tipo segunda e terça, ou terça e quinta, vamos supor. Ele marcava esses dois dias. Era obrigado. Quando eu fiz 15 anos aí começou três vezes por semana”, conta.
“Engravidei diversas vezes. Perdi as contas. Foram muitas vezes
mesmo”.
O próprio padrasto providenciava o que seriam medicamentos abortivos: “Ele me deu remédio pra abortar mesmo, pra matar. Entregava os comprimidos na minha mão e eu tomava”.
O padrasto está preso. A mãe não quer vê-lo nunca mais. Longe do agressor, é hora de refazer a vida: “Querendo ou não ele destruiu a melhor parte da minha vida, que foi a minha infância. Mas agora é seguir em frente”, conta ela.
“Agora eu posso viver a minha vida, agora eu posso ir atrás do que eu sempre quis pra mim. Que ele não deixava ter”, conclui.
(Natália Martino, da IstoÉ) Aumentam as denúncias de violência contra crianças e adolescentes, mas ainda é preciso avançar no atendimento às vítimas e na punição dos culpados
As denúncias chegam, em geral, por conhecidos das vítimas, raramente pelas pessoas abusadas. “Por um misto de medo e culpa, muitas delas passam décadas sem compartilhar a dor com ninguém”, explica a psicóloga Elizabeth Vieira Gomes, do Comitê Nacional de Enfrentamento de Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Xuxa levou mais de 30 anos para assumir publicamente os abusos. O silêncio de L. durou 12 anos. “Eu tinha medo de ninguém acreditar em mim, ele era uma pessoa em quem todos confiavam”, conta. Ela não tinha mais de 4 anos quando o avô lhe disse “olha o que eu tenho aqui, é diferente do que você tem”, e lhe mostrou seu órgão sexual. A carioca de 31 anos não se lembra de detalhes desse dia, mas tem recordações claras das carícias sexuais que ele lhe fez aos dez anos. “Eu sabia que era errado porque ele me pedia que não contasse a ninguém e porque nenhum outro adulto fazia aquilo comigo”, diz. Só aos 16 anos ela confessou o ocorrido à mãe. “Passei esse tempo nutrindo ódio pelo meu avô sem nunca revelar a razão”, diz ela.
As reações de descrença em Xuxa manifestadas nas redes sociais também acontecem com anônimos. Muitas vezes, por parte de quem deveria ajudar a vítima. “É comum os médicos e os policiais dizerem que tudo não passou de ‘sem-vergonhice’ da pessoa que sofreu o abuso”, afirma Waldemar Oliveira, do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan da Bahia (Cedeca). Em alguns hospitais do País, porém, a situação é diferente. No Hospital das Clínicas de São Paulo, por exemplo, funciona há dez anos o Núcleo de Assistência à Vítima de Violência Sexual (Navis). Trata-se de um grupo formado por enfermeiros, assistentes sociais e médicos de várias especialidades que se empenham em prestar atendimento rápido e eficiente a quem precisa. “Os casos de violência sexual exigem muita sensibilidade”, diz a médica Ivete Boulos, coordenadora do Núcleo. As vítimas, e, às vezes, alguns familiares, também recebem acompanhamento psicológico por, no mínimo, seis meses.
“O médico precisa estar preparado para fazer o primeiro acolhimento, pois os remédios que podem prevenir Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs) só são eficientes nas 72 horas posteriores à agressão”, diz Ivete. Segundo ela, há pessoas que chegam anos depois de terem sofrido a violência e são diagnosticadas com doenças como sífilis e vários problemas psicológicos. Em outros casos, pais levam os filhos para tratar problemas de saúde e os médicos detectam a existência de DSTs. Serviços desse tipo também existem em cidades como Ribeirão Preto, Campinas, Belo Horizonte, Curitiba e Goiânia, mas ainda não estão presentes na maior parte do País.
Nas esferas legislativa e jurídica também são necessárias adaptações. O avanço mais recente foi a sanção da lei que define que o tempo de prescrição do crime de abuso sexual conta a partir dos 18 anos da vítima. No campo jurídico, as mudanças começaram na década de 1990 com a criação de varas especializadas em infância e juventude. “Nas varas comuns, o objetivo é prender o suspeito, nas especializadas a prioridade é acolher as vítimas”, explica Lélio Ferraz de Siqueira Neto, promotor de Justiça da Infância e Juventude do Ministério Público de São Paulo. Para isso, os membros recebem treinamentos especiais e até alguns dos processos são revistos. Em São Paulo, a criança presta depoimento uma única vez e não precisa repetir a história para o delegado, depois para o promotor e assim por diante.
Essas varas especializadas agilizam o julgamento dos casos. De acordo com levantamento realizado pelo Cedeca da Bahia, antes da criação da primeira vara especial do Estado, em 1997, a maioria dos processos de abusos sexuais demorava tanto tempo para ser julgada que prescrevia. Com as varas especializadas, o problema praticamente acabou e o tempo de tramitação, que antes variava entre seis e dez anos, passou a ser, no máximo, de dois anos. No entanto, ainda existem pouquíssimas dessas varas no País. A média é de um juiz especializado para atender quase 400 mil pessoas. Essa deficiência, aliada à dificuldade em se conseguir provas de uma agressão que acontece, na maioria das vezes, dentro da casa das vítimas, resulta em um enorme número de casos sem solução. É preciso mudar essa realidade.
Acesse em pdf: Abuso sexual: O longo caminho da superação (IstoÉ – 25/05/2012)
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