Apesar dos 181 anos de condenação e ao menos 48 estupros, o médico-monstro Roger Abdelmassih vai levar uma vida de conforto em sua casa por determinação da Suprema Corte. O que isso diz sobre nossa Justiça?
(IstoÉ, 06/10/2017 – acesse aqui)
Antes mesmo de receber a notícia de que havia sido beneficiado pela sétima vez — em menos de três meses — por um habeas corpus que lhe permite cumprir prisão domiciliar, o ex-médico e estuprador Roger Abdelmassih, 74 anos, já desfrutava de regalias que milhares de brasileiros em liberdade jamais conseguirão experimentar. No domingo 1, dois dias após a decisão concedida por Ricardo Lewandowski, ministro do Supremo Tribunal Federal, um veículo repleto de compras de supermercado estacionava na rua Ibiapinópolis, no bairro de alto padrão Jardim Paulistano, em São Paulo. As sacolas abasteceram o apartamento do 12º andar onde vivem a esposa de Roger, Larissa Maria Sacco, que é procuradora licenciada, e os filhos gêmeos do casal. Na lista de compras, alguns dos produtos que Abdelmassih sentia falta: iogurtes, pão sírio e mussarela de búfala. Na segunda-feira 2, o homem condenado a 181 anos por ter cometido ao menos 48 estupros em 37 mulheres chegou ao condomínio em outro automóvel. Carregado por um dos funcionários do prédio e acomodado em uma cadeira de rodas, ele retornava ao conforto da vida domiciliar.
O apartamento recebeu uma coleção de tapetes persas. Um dos funcionários do prédio diz ter ficado com dores nas costas de tanto carregá-los
“Se fosse pobre estaria preso”
Um dos quartos do aconchegante apartamento de 272 metros quadrados foi adaptado para servir de unidade de terapia semi-intensiva, com maca de hospital, suporte para pendurar soro, remédios, cilindros de oxigênio e uma cama king size. Na sala de quase 65 metros quadrados, além de um imenso sofá, há objetos decorativos em estilo árabe e tapetes persas que chegaram recentemente de uma das fazendas vendidas pela família Abdelmassih. Do lado de fora do apartamento avaliado em cerca de R$ 5 milhões, as cortinas quase sempre fechadas escondem o dia a dia do ex-médico — e sempre monstro. Desde 21 de junho, quando a 1ª Vara de Execuções Criminais de Taubaté concedeu pela primeira vez o benefício de prisão domiciliar em função de laudos que atestariam uma condição de saúde debilitada de Abdelmassih, os moradores do condomínio Monte Verde sentem-se incomodados com o vai e vem do ex-médico. “Eles perguntam até quando esse inferno vai durar”, diz um funcionário que não quis se identificar. Prestar assistência ao estuprador revolta quem trabalha no prédio. “É horrível ter de carregá-lo no colo”, diz um deles. “A Justiça é falha. Se fosse uma pessoa pobre não estaria em liberdade”, afirma, em tom indignado, um prestador de serviço do edifício vizinho.
Dos mais de 100 anos de condenação em regime fechado, Abdelmassih passou somente três na cadeia. Em agosto de 2014, após ser encontrado foragido no Paraguai, ele foi levado à Penitenciária II de Tremembé. Larissa costumava visitá-lo duas vezes por semana acompanhada pelo motorista. Hoje, três anos depois, ela evita sair do apartamento. O casal e as crianças vivem uma rotina de reclusão. Momentos com o pai só são permitidos na sala do imóvel. Só têm acesso ao quarto a mulher e as empregadas, uma cozinheira e uma faxineira. Três vezes por semana, um carro chega para entregar os cilindros de oxigênio — Abdelmassih tem insuficiência cardíaca crônica. O veículo da família, uma SUV blindada de R$ 200 mil, é usado principalmente para levar os filhos à escola. Ambos estudam em um colégio na avenida Paulista com mensalidades de R$ 2,6 mil. A alegação de problemas de saúde, segundo funcionários, pode ser fingimento. Eles relatam não haver acompanhamento médico. Abdelmassih já foi flagrado levantando da cadeira de rodas com facilidade. “O tratamento médico deve ser comprovado à Justiça”, afirma Lúcio França, advogado criminalista. Relatórios mensais sobre a saúde de Abdelmassih devem ser enviados à 1ª Vara de Execuções Criminais de Taubaté. “Pela gravidade do caso, ele deveria ter acompanhamento diário de enfermeiras e fisioterapeutas.”
Além do estado de saúde, a ruptura do contrato do governo de São Paulo com a empresa fornecedora de tornozeleiras eletrônicas também colaborou para a concessão do benefício ao ex-médico. Em agosto, ele foi mandado de volta à cadeia pela falta do equipamento. Dias depois, o advogado Antonio Celso Galdino Fraga alegou que seu cliente não poderia sofrer as consequências de uma falha do Estado. Hoje, Abdelmassih vive sem monitoramento, porém a Polícia Penitenciária visita o edifício e questiona funcionários duas vezes por dia. A presença do criminoso causou tanta revolta em alguns moradores que a síndica pediu que o proprietário do imóvel não renovasse o contrato com o atual inquilino. O aluguel de R$ 19 mil, que inclui o condomínio, é pago a um empresário. O detalhe é que o contrato estaria no nome de um familiar de Larissa. “Ela costuma omitir o sobrenome”, diz o funcionário do prédio.
Falha do Estado
Embora a decisão de conceder habeas corpus tenha ocorrido dentro da lei, a ação casou indignação em diversas esferas da sociedade. “A justiça nem sempre é social. Trata iguais de forma desigual”, diz França. O fato de Abdelmassih ser um médico conhecido e de alto poder aquisitivo fez com que ele tivesse rápido acesso a determinados benefícios. “É muito difícil uma pessoa com problemas de saúde obter o direto à prisão domiciliar.” O benefício tem sido utilizado com mais frequência em função da operação Lava Jato, por pessoas com boas condições sociais e financeiras. Caso ocorra o agravamento de sua condição de saúde ou até mesmo o óbito, Estado e juízes poderiam ser responsabilizados por omissão, respondendo a um processo criminal e administrativo junto ao Conselho Nacional de Justiça, caso a defesa requeira.
“O réu ofendeu a integridade, causou danos físicos e morais a muitas vítimas. Esse benefício só poderia ser concedido a réus em regime aberto”, diz a promotora de Justiça do Ministério Público de São Paulo, Fabiana Dal’Mas Rocha Paes. Para ela, a decisão de soltar Abdelmasssih não atende ao interesse público. “Todos os presos deveriam ter acesso a atendimento médico, independentemente da classe social. Uma falha do Estado não justifica colocar o réu em regime domiciliar.” Segundo Fabiana, em outros países, estupradores cumprem pena por esse tipo de crime somente em regime fechado. Além disso, Abdelmassih tem como agravante a fuga que organizou em janeiro de 2011, após a condenação a 278 anos. O fato se contrapõe ao argumento do ministro Lewandowski de que ele não teria cometido nenhum ato que quebrasse a confiança do juízo de execução penal. A decisão abre precedentes perigosos. Segundo Fabiana, como o crime de estupro é subnotificado, uma pena desproporcional pode servir como desestímulo às denúncias.
A volta de Abdelmassih para casa é um pesadelo também para as pessoas traumatizadas pelos horrores praticados por ele. “A decisão do STF foi infeliz. Abdelmassih destruiu vidas, famílias inteiras. Muitas me procuraram pedindo ajuda psicológica, pois estão abaladas”, afirma a psicóloga Maria do Carmo dos Santos, presidente do grupo Vítimas Unidas, formado por mulheres atacadas pelo estuprador. “Foi desanimador porque lutamos muito pra colocá-lo na cadeia.” Há vários casos de depressão e síndrome do pânico entre essas mulheres, e qualquer nova notícia envolvendo o nome de Abdelmassih é um baque para que os traumas do passado retornem. Várias denunciantes se expuseram publicamente e temem que o ex-médico, ainda hoje um homem influente, comece uma perseguição contra elas. “Se alguma delas se suicidar, o STF estará com as mãos sujas de sangue”, diz Santos.
Denúncias contra o estuprador surgem até hoje. A última foi feita no dia 15 de setembro deste ano em uma delegacia de São Paulo. Durante o tratamento reprodutivo em 2004, uma paciente acordou nua depois de uma sedação com Abdelmassih fitando seu corpo e notou a vagina molhada, situação que nada teria a ver com o procedimento em questão. “Até hoje mulheres me escrevem para falar de alguma situação de constrangimento, abuso ou mesmo crime que viveram na clínica”, afirma Vanuzia Lopes, fundadora do Vítimas Unidas e uma das responsáveis por localizar Abdelmassih no Paraguai. Além dos estupros, surgiram relatos incriminando o ex-médico por manipulação genética. Há casais que fizeram o tratamento com ele e, mais tarde, descobriram que os filhos que tiveram não eram seus porque o óvulo não era da mãe ou o esperma não era do pai. “Encaminhamos uma denúncia contra o Brasil na Organização dos Estados Americanos, que foi aceita, por descaso em relação aos crimes genéticos cometidos por ele e exigindo uma nova legislação para reprodução assistida”, afirma Vanuzia. Óvulos de várias mulheres também sumiram e até hoje pacientes e vítimas procuram pelo material genético que teria sido deixado na clínica. No prédio em que cumpre a pena, funcionários afirmam que ele costumava pagar para pessoas que trabalhavam ao redor da mansão onde funcionava a clínica para obter sêmen.
Antes de ser preso preventivamente, Abdelmassih desfrutava de uma vida luxuosa. Costumava cobrar R$ 30 mil por três tentativas de gravidez. O aluguel da mansão onde funcionava sua clínica era de R$ 70 mil. Com a prisão, a principal fonte de riquezas secou. Mas ele mantinha ainda outras atividades. O ex-médico era também um dos principais fazendeiros de Avaré, interior de São Paulo. Segundo o Ministério Público de São Paulo, o cartório identificou à época da denúncia que, das 17 propriedades rurais em nome da empresa agropecuária da qual ele é sócio, duas foram vendidas e 14 repassadas a grandes bancos. Só em terras da região, seu patrimônio era estimado em R$ 18 milhões. Desde dezembro do ano passado, a juíza Adriana Sachsida Garcia determinou o bloqueio dos bens do ex-médico para que possam servir de pagamento às indenizações. O MP também pediu o congelamento do patrimônio de Larissa Sacco e da irmã Elaine Therezinha Sacco Khouri, que teriam criado a Agropecuária Colema para receber dinheiro das empresas que exploram os serviços da fazenda de Avaré.
Enquanto estava foragido, foi montado um esquema financeiro para que grandes quantidades de dinheiro em espécie, escondidos na fazenda, cruzassem a fronteira. A operação era comandada pela cunhada Elaine e pela irmã do ex-médico, Maria Stela. A Colamar, aberta no nome de Larissa e controlada por Elaine, tinha como objetivo enviar recursos ao casal. Abdelmassih ainda tem participação em três empresas no estado de São Paulo: o Instituto do Homem, a Massih Serviços Empresariais e a Agropecuária Sovikajumi. Não é de hoje que a história do ex-médico desperta indignações. Ele também teria recebido recursos do ex-dono do hospital São Luiz em São Paulo, Ruy Marco Antônio. Funcionários da família faziam o transporte das cédulas até o Paraguai.
Duas empregadas e um motorista particular trabalham para
o ex-médico, que ainda tem participações em três empresas em SP
O promotor de Justiça de São Paulo José Reinaldo Guimarães Carneiro lembra que as primeiras denúncias contra ele foram rejeitadas. Tempos depois, o inquérito desapareceu do fórum criminal da Barra Funda. Somente após a visibilidade do caso, o documento foi reencontrado em um banheiro do prédio. Hoje, a Justiça parece tratar o caso com a mesma indiferença.
O QUE ESTÁ POR TRÁS DA PRISÃO DOMICILIAR
Tipo de processo
O ex-médico está submetido a um processo de execução penal, que ocorre quando o preso está cumprindo pena. Nele, determina-se a progressão do regime. O juiz pode tomar decisões e os trâmites são mais rápidos
Estado de saúde
Internado diversas vezes após ser preso, o ex-médico apresentou problemas cardíacos. Com isso, advogados se dividiram ao decidir se ele deveria ser tratado em casa ou no presídio. Um dos laudos periciais afirmava que a doença cardíaca era grave
Interpretação da lei
De acordo com a legislação, presos com doenças graves ou maiores de 70 anos que cumprem pena em regime aberto podem ter a pena revertida em prisão domiciliar. Em alguns casos, o benefício pode ser aplicado para presos em regime fechado
Tornozeleira eletrônica
O médico usava o equipamento em casa, mas, em agosto, o governo de São Paulo rompeu o contrato com a empresa fornecedora. A defesa alega que ele não pode arcar com um ônus do Estado
Por Fabíola Perez
Com Camila Brandalise, Eliane Lobato e Alan Rodrigues