A Lei 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, traz a mobilização social em seu nascedouro. Ainda na década de 90, vimos nascer a campanha mundial “16 Dias de Ativismo Pelo Fim da Violência contra as Mulheres”. Em 1998, quando o caso de Maria da Penha Maia Fernandes foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, já acompanhávamos uma grande movimentação nacional e internacional de ativistas que buscavam o fim da violência contra a mulher. No início dos anos 2000, tivemos uma forte batalha dos movimentos feministas pela criação de uma lei que atendesse, especificamente, a esse tipo de violência – e o resto é história.
(Justificando, 17/10/2017 – acesse no site de origem)
A criação da Lei Maria da Penha foi uma verdadeira transformação no amparo de mulheres em situação de violência – vocábulo este que também se fez existir por meio de debate sobre a própria condição da mulher nesse contexto, ou seja, lutou-se até para que a mesma deixasse de ser vítima e passasse a ser um sujeito digno de superação. Essa mesma Lei, logo em seu nascimento, também encontrou obstáculos em relação a sua constitucionalidade.
Tendo isso em mente, podemos entender melhor por que alterações legislativas feitas sem prévia consulta popular podem ser capazes de gerar prejuízos para aquelas pessoas que, inicialmente, se visava acolher.
O Projeto de Lei da Câmara n° 7, de 2016, de autoria do deputado federal Sergio Vidigal (PDT/ES), aprovado no dia 10 de outubro de 2017, traz em sua ementa: “Acrescenta dispositivos à Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006, para dispor sobre o direito da vítima de violência doméstica de ter atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado, preferencialmente, por servidores do sexo feminino, e dá outras providências”. A matéria, agora, aguarda sanção presidencial, mas já gera polêmica entre diversas organizações, as quais têm se posicionado contra as alterações e pedido seu veto.
Tal projeto, se sancionado, acrescentaria à Lei Maria da Penha os artigos 10-A, 12-A e 12-B, trazendo novas disposições com relação ao atendimento prestado pelas autoridades policiais.
O grande debate gira em torno da previsão que traz o art. 12-B: a autoridade policial teria poderes para aplicar as medidas protetivas de urgência previstas na Lei
Enquanto os artigos 10-A e 12-A buscam criar meios para que as delegacias e o atendimento ali oferecido seja melhor adaptado à realidade da mulher em situação de violência – cuidados no atendimento, recintos projetados para tal finalidade, acompanhamento de profissional capacitado no momento da inquirição, criação de delegacias e setores especializados – o art. 12-B confere à autoridade policial um poder que não é condizente com essa mesma realidade e deixa de levar em conta outros fatores.
Diversas organizações já apontaram os problemas em tal medida: a autoridade policial não é investida de função jurisdicional, logo estaria ferindo a própria tripartição dos Poderes; a Polícia, que já encontra grandes dificuldades para realizar suas atividades investigativas, não teria a infraestrutura e o contingente necessário para levar a cabo essa nova incumbência, o que, a longo prazo, resultaria na impunidade do agressor e numa consequente vulnerabilidade da mulher em situação de violência.
A mulher encontraria uma imensa dificuldade para ter acesso ao Judiciário e ver a sua demanda amparada judicialmente, o que a faria dependente da autoridade policial e suscetível à revitimização; no meio de tanta burocracia e automatização das demandas judiciais, o Judiciário passaria apenas a confirmar a decisão policial sem avaliar as peculiaridades do caso concreto.
Além de todos esses problemas, a redação do artigo ainda deixa margem para interpretações perigosas: se a autoridade policial entender que não é caso de aplicação de medidas protetivas de urgência, teria a mulher a capacidade de chegar sozinha à autoridade judicial? Qual seria o nível de autonomia da mulher em tais situações?
Sabemos que a nossa Polícia e o nosso Poder Judiciário são ambientes hostis que reproduzem, ainda hoje, práticas machistas e de desestímulo às mulheres, ridicularizando-as e colocando-as em situações aviltantes quando as mesmas procuram resguardar seus direitos e sua integridade. Ora, por que, então, vamos permitir que nos tirem a autonomia de acesso à Justiça e nos tornem cada vez mais dependentes de uma instituição com princípios retrógrados que, no geral, ainda não possui o preparo necessário para lidar com um tipo de violência tão gritante na nossa sociedade?
Se a Lei Maria da Penha se fez com a mobilização popular de mulheres, é com esta que ela vai se guiar, se validar e se efetivar – e não com a discricionariedade de órgãos que, muitas vezes, se afastam da função de proteger e orientar as mulheres.
Stela Silva Valim é Advogada Criminalista e membra da Rede Feminista de Juristas (Defemde).