Após 31 anos, a primeira DDM de São Paulo passou a funcionar 24 horas e teve um aumento de 158% no total de ocorrências. Em entrevista à Marie Claire, a delegada Giovanna Valenti Clemente faz um balanço do primeiro mês, comenta sobre as possíveis mudanças na Lei Maria da Penha e ainda rebate as críticas sobre despreparo das autoridades
(Marie Claire, 04/10/2016 – acesse no site de origem)
Há 31 anos, foi criada em São Paulo a primeira Delegacia de Defesa da Mulher, localizada no centro da capital paulista. Somente há pouco mais de um mês, no entanto, a unidade passou a funcionar 24 horas por dia, todos os dias da semana – extensão que ainda não vigora nas outras 131 DDMs do Estado. A conquista considerada importante pelo movimento das mulheres se reflete nos números. “O balanço é positivo”, diz a delegada Giovanna Valenti Clemente em entrevista à Marie Claire.
O levantamento realizado pela Polícia Civil, no primeiro mês de funcionamento com horário estendido, mostra um aumento de 158% nos registros de boletins de ocorrência. Do dia 22 de julho a 22 de agosto – data da inauguração -, foram 132 ocorrências. Já do dia 22 de agosto a 21 de setembro, um total de 341. “Além disso, nesse período foram registrados sete flagrantes a mais do que no mês anterior, quando não teve nenhum”, consta no balanço oficial.
Segundo Giovanna, o crescimento se deve ao aumento de informação. “Isso contribuiu para que as mulheres não se sintam mais tão isoladas. Elas sabem que podem pedir ajuda”, diz. Lesão corporal por parte do companheiro, violência doméstica, ameaça e injúria seguem sendo os crimes mais cometidos.
A seguir, a delegada dá mais detalhes dos processos, rebate as críticas direcionadas ao atendimento das vítimas nas delegacias especializadas e comenta sobre as possíveis alterações na Lei Maria da Penha.
Marie Claire – Qual o motivo deste aumento repentino de ocorrências no primeiro mês de funcionamento 24h da 1ª DDM?
Giovanna Clemente – Você pode me perguntar: os maridos passaram a agredir mais as mulheres de um mês para cá? Não. O que eu acho é que as mulheres têm se sentido de certa forma mais corajosas e protegidas para se expor e procurar ajuda. Essa é a parte social, fora a criminal, que a delegacia acaba fazendo. Economicamente e socialmente, nada mudou na cidade. O que eu acho é que, com a divulgação, as mulheres já não se sentem isoladas. Elas sabem onde podem pedir ajuda agora.
MC – O tipo de ocorrência mudou?
GC – De forma nenhuma. As ocorrências continuam tendo o mesmo padrão, que é lesão corporal praticada pelos companheiros, violência doméstica, ameaça, injúria… Algumas vítimas registram uma dessas isolada, enquanto outras, as três.
MC – Diante do aumento de denúncias, é importante que esse funcionamento 24h seja ampliado e passe a vigorar também nas outras DDMS, não?
GC – A gente vislumbrava essa necessidade, porque as pessoas gostam mais de ir a uma Delegacia da Mulher para ser atendida por mulher, do que ir a uma delegacia de bairro que atende a outros crimes. A vítima não se sente tão à vontade de relatar o seu problema neste caso. Acho que é algo que deve ser conquistado pelas outras unidades, mas não sei como está a situação hoje quanto à colocação de funcionários. Facilitaria para as mulheres o registro na região? Sim, porque é muito mais fácil e ela não precisaria se deslocar até o centro. Porém, não tenho conhecimento de algum estudo sobre isso.
MC – Quais são os dias de maior movimento na DDM?
GC – Segunda-feira, quando são feitas as queixas do fim de semana, período em que as famílias convivem mais. Existem exceções, mas a regra é essa. Já o flagrante, normalmente, ocorre mais à noite e aos finais de semana.
MC – Os funcionários das Delegacias de Defesa da Mulher passam por algum treinamento específico com relação às questões de gênero?
GC – Na verdade, são as pessoas mais antigas que trabalham aqui. Elas vieram por opção, nada foi imposto. Como sanamos o problema da falta de experiência? Elas não recebem treinamento fora, só passam pela academia de polícia e saem como escrivão, investigador, delegado. O conhecimento específico, elas recebem dos colegas mais experientes.
MC – Existe um sucateamento hoje nas DDMs?
GC – Não posso falar que a primeira DDM está sucateada. Acabei de receber vários funcionários. Tudo o que eu pedi foi atendido.
MC – Nós já ouvimos relatos de vítimas de estupro que criticaram o atendimento recebido nas delegacias especializadas e muito se fala da culpabilização das vítimas no momento do depoimento. Como você avalia a crítica direcionada ao despreparo das autoridades?
GC – Ninguém aqui culpa a vítima. Quando estamos falando de um crime sexual, a pessoa tem que descrever exatamente o que aconteceu. Qual a diferença entre estupro e sexo? O consentimento. Então talvez ela se sinta constrangida no momento em que é questionada se foi sem o consentimento dela. Mas é uma obrigação de quem está registrando a ocorrência fazer este tipo de pergunta, sem que a vítima se sinta ofendida, porque trata-se de um crime que a deixa muito fragilizada.
MC – Existe um estereótipo ruim então relacionado às DDMs?
GC – Pode até ser que tenha, mas é relativo ao momento em que ela ouviu algo que a incomodou, à delegacia que ela procurou. Não posso falar de uma coisa pela qual não passei.
MC – Como funciona, na prática, o atendimento? Existe uma necessidade de aprimoramento?
GC – A vítima vem no melhor momento pra ela e registra a ocorrência. Se aconteceu de chamar a Polícia Militar ou se ela foi conduzida até a delegacia no momento da agressão, é um caso de flagrante. Tirando o momento de flagrante, ela pode vir quando for mais fácil pra ela. Aí é feito o primeiro registro. Quanto existe a lesão corporal, é ação pública incondicionada [independe da manifestação prévia do ofendido para ser iniciada]. Com certeza essa agressão vai virar um inquérito policial, ela querendo ou não. Se foi ameaça, é preciso a representação da vítima. Ela tem o prazo de seis meses, contando a partir da data do ocorrido, para representar. Em alguns casos, a vítima não representa, mas pede as medidas protetivas. Neste momento também é instaurado um inquérito. O único momento em que não é instaurado é quando tem ameaça e ela não representa por livre e espontânea vontade.
MC – Qual é o prazo para a concessão de medida protetiva?
GC – Eu tenho dois dias para encaminhar até o fórum. Nós costumamos encaminhar no dia seguinte. O juiz também tem um prazo para responder. Em menos de uma semana, a vítima já tem a informação se as medidas protetivas foram deferidas ou indeferidas.
MC – Você é favorável ao projeto de lei proposto pelo deputado Sergio Vidigal (PDT-ES), que altera a Maria da Penha ao prever que medidas protetivas possam ser expedidas pelo delegado de polícia, sem esperar chegar até o juiz?
GC – Na teoria, sou a favor, acho que facilitaria. Mas, na prática, essa é uma pergunta difícil de responder, porque é preciso ter uma estrutura de funcionários para fazer o que faz um oficial de justiça – intimar tanto o autor, quanto a vítima, das medidas. Não sei se nós temos condições de realmente atender. Mas a verdade é que temos um contato mais humano com a vítima.
MC – Mesmo quem pede medida protetiva costuma reatar o relacionamento?
GC – Sim. Às vezes, você liga para intimar a vítima e ela diz que está grávida dele e que os dois estão bem. Por isso digo que muitas denunciam num momento de raiva, só que depois a raiva passa. Ainda assim o inquérito segue instaurado, porque houve a violência, independente de eles terem voltado a se entender.
MC – Na hora da denúncia, as vítimas demonstram medo? Se sentem culpadas?
GC – Não. Elas chegam em um momento de muita raiva. E aí não tem medo de nada. Pelo contrário, o que elas souberem de coisas erradas, elas falam. O episódio ainda é bem recente. A culpa também não existe. O que eu percebo é o vínculo emocional que não rompe. E aí não tem polícia que resolva.
MC – É muito mais complexo…
GC – Sim. Não é só apurar a parte de crime. Essas mulheres precisam de apoio. É um processo emocional, não é só um caso de polícia. Às vezes, elas chegam aqui para literalmente chorar pelo que está acontecendo na vida delas. A pessoa não está nem preocupada com o registro da ocorrência, mas em ter alguém pra conversar. Isso só vai mudar com os anos.
MC – Qual o planejamento para que o atendimento e os resultados melhorem ainda mais?
GC – A delegacia está funcionando e continuará neste formato. O que existe é uma expectativa em relação ao serviço interno. Não só fazer o primeiro atendimento e registro, mas finalizá-lo [atuar nas investigações]. Este é o meu foco, porque elas vêm com um objetivo maior do que o primeiro registro.
Daniela Carasco