Os bastidores da reportagem que investigou a explosão dos assassinatos, da violência doméstica, da gravidez precoce… E isto entristeceu as altamirenses
(Claudia, 17/09/2017 – acesse no site de origem)
Saí para fazer uma reportagem em Marabá, no Pará, em junho passado. O voo demora, pinga em Brasília, em Belém… Fui lendo um longo relatório do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e, quando desci do avião, concluí que estava na pauta errada. Era muito mais urgente falar da paraense Altamira. Assim que o dia amanheceu, me mandei pra lá.
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Tenho um parceiro (meu parça, meu brother, chiclete e dente, unha e carne), o fotógrafo Victor Moriyama, que topou se embrenhar pela Rodovia Transamazônica dirigindo por mais de 11 horas sob a poeira quente e sobre um tapete de buracos. Nessas situações, num carrinho popular 1.0, vou de copiloto. Pra não deixar o Victor esmorecer, ligo o rádio, canto junto aquelas músicas tipo sofrência (para dor de corno), muito comuns no Norte do Brasil. Voamos por aí. Reportagem requer adrenalina e excitação.
Por que Altamira? O município anda perigoso. Apareceu como o mais perverso no Atlas da Violência, feito pelo Ipea e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Em 2015, a taxa que somou homicídios e mortes violentas por causa indeterminada era de 107 por 100 mil habitantes. “Se há tantas mortes, certamente há muitas mulheres chorando lá”, pensei eu. São elas que vão aguentando o repuxo e o baque quando a violência arromba a porta de casa. As mulheres ficam sozinhas nas guerras urbanas que matam mais os seus meninos homens. Também se sentem abandonadas em um outro tipo de guerra que leva embora seus amores e seus maridos – eles migram em busca de oportunidade de trabalho e sobrevivência ou de novas mulheres. Altamira tem mais um agravante: o feminicídio está em alta.
Encontrei uma cidade de mulheres fortes. Estão sofrendo, mas reagindo. Elas sobraram no pedaço. E tentam administrar a ressaca infernal deixada pelo consórcio Norte Energia, que tocou as obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte. A construção impactou o rio Xingu, o povo da floresta amazônica e deixou um rastro de destruição e truculência urbana com graves consequência na vida das altamirenses. O canteiro de obras atraiu quase 50 mil homens para o lugar, onde viviam 96 mil habitantes. Não havia esgoto e segurança pública suficientes para atender a explosão populacional. As demandas sociais multiplicaram, o trânsito passou a matar demais, faltaram ruas, casas, comida…
Ao chegar, fui primeiro ao cemitério São Sebastião. Vi, de cara, uma cruz branca com o nome de Jéssica. A cova parecia fresca; e Jéssica, assassinada aos 25 anos, tinha menos que a idade de minha filha, Luíza. Foi Índio, o coveiro baixinho, descendente de uma das 20 etnias indígenas da região, quem melhor traduziu a mortandade. Ele desconhece o significado da palavra taxa, mas dá a medida da tragédia: “Não tem mais terra virgem aqui no campo santo. Ponho um caixão em cima do outro”.
Índio me contou que a morte não era para Jéssica. Ela estava na garupa da moto com o marido. Os 20 tiros eram para executá-lo. Dezenove o atingiram na cabeça. Um pegou Jéssica no peito. O coveiro não sabia mais nada sobre Jéssica. Não sosseguei enquanto não encontrei sua família, seus três filhos, sua história. O que aquela moça enfrentou coincide com a vida de milhares e milhares de mulheres da sua geração – da gravidez/casamento precoce ao deslumbramento com um emprego na construção de Belo Monte, passando pela violência doméstica e pela clássica desproteção do Estado. Visitei várias vezes Dalva Nazaré da Silva, 61 anos, viúva, mãe de Jéssica, que agora cria os filhos que ela deixou. Dalva ouvira uma saraivada de balas perto de casa. Estava com os neto. Todos viram o corpo de Jéssica tombar sem vida.
Victor reuniu imagens neste vídeo, que agora disponibilizamos aqui. É um breve relato nosso sobre o que vivemos naqueles dias inesquecíveis. A memória não desgruda daquilo que nos impacta. Altamira me marcou pra sempre.