Se pararmos só um pouco para pensar sobre o machismo e o patriarcado e o que eles exigem das mulheres e dos homens, vamos perceber como são sistemas pra lá de incoerentes e contraditórios. Tão sem sentido que é de se espantar que ainda permaneçam ditando as regras da nossa sociedade, ao menos em linhas gerais. Deve ser por isso que o maior medo de quem é machista é que nós mulheres (e os homens aliados) apontemos as incoerências de sua estrutura. Olhando de perto, não há argumento que o sustente.
(Emais, 17/05/2018 – acesse no site de origem)
Comecemos pelo básico: as mulheres, especialmente as não-brancas, foram classificadas ao longo da história como “emoção”, em contraste aos homens sempre alocados no âmbito da razão. Foi essa a justificativa para negar às mulheres o direito ao voto, a trabalhar fora de casa e a ocupar a esfera pública. Os argumentos eram de que tais funções poderiam atrapalhar o exercício da maternidade e do casamento, fora que as mulheres não conseguiriam ter o mesmo discernimento político que os homens, por não terem tão desenvolvidas a razão. Também é ligando as mulheres à natureza e não ao mundo racional que se perpetua o racismo, a exotização e objetificação de mulheres negras, a discriminação contra indígenas e asiáticas e a naturalização da paternidade ausente, já que o instinto parental intrínseco viria só do lado da mãe.
Mas o mesmo patriarcado que separa homens e mulheres entre razão e emoção é o patriarcado que justifica estupros, assédios e demais violências sexuais com base no argumento de que o homem não consegue controlar seus impulsos. Pode ver em qualquer roda de conversa ou caixa de comentários, tem sempre o argumento de que a roupa da mulher não deixou outra alternativa, de que do jeito que as adolescentes se vestem hoje é impossível resistir, entre outras barbaridades. As meninas de muitas escolas são proibidas de usar shorts sob a alegação de que o vestuário prejudicaria a concentração e o rendimento dos meninos. Estupro ainda é associado a um impulso sexual incontrolável, e não a um jogo de poder. Oras, no mínimo era de se esperar mais dos detentores de toda a racionalidade da humanidade. Caro machismo, decida-se.
A lógica se estende em várias esferas. No Brasil, por exemplo, o futebol feminino foi proibido por quase 40 anos, sob o argumento de que era anti-natural. O Decreto de 1941 que formalizou a proibição dizia que “às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza”. Oras, se é contra a natureza da mulher jogar futebol, por que elas formavam times? Por que é preciso um decreto governamental para proibir algo que já vai contra a natureza? Caro machismo, decida-se.
Em uma coisa, no entanto, o machismo não tem dúvidas: é preciso atacar quem aponta suas incoerências. Nós, feministas, somos sempre ridicularizadas e desqualificadas ao fazê-lo. Quando acossados, os machistas bradam que nós não deveríamos falar sobre o assunto em questão (qualquer que seja ele) e sim defender as mulheres muçulmanas, “onde realmente há opressão”(sic). Nós falamos e muito sobre isso, sempre levando em conta as diferenças culturais, basta dar um simples Google – inclusive a comunidade internacional está unida em torno do caso de Noura Hussein. Melhor ainda, há as próprias mulheres muçulmanas lutando por seus direitos, de maneira muito mais contundente do que as outras poderiam fazer. E nós apoiamos a luta delas. Caro machismo, decida-se (e dê um Google).
Outra opção é que os machistas, ao invés de refletir sobre suas crenças quando apontadas suas falhas, gritem que “sobre o alistamento militar obrigatório as feministas não falam”. É a aceitação de que não há como rebater o argumento contrário e a única alternativa é distrair, tirar o foco do discurso, culpando-as por qualquer coisa, inclusive de não ter como prioridade uma pauta dos homens.
Quando saem em “defesa da vida”, são muitas as pessoas que bradam que quem defende o aborto é assassino/a, assim como as mulheres que abortam voluntariamente. São muitos que tentam persuadir, em seu discurso, para que se pense que as feministas entendem o aborto como política única e definitiva de educação sexual e planejamento familiar. Para que se pense que queremos ver o aborto indiscriminadamente. Pelo contrário, as políticas de legalização do aborto que tanto defendemos vêm necessariamente atreladas a uma educação sexual efetiva, completa e inclusiva, dando acesso a um planejamento familiar informado. Isto é, defendemos que o aborto possa acontecer sem penalização para a mulher, mas entendendo que ele é um último recurso disponível. Defendemos isso porque sabemos que todos os países que legalizaram o aborto registraram queda no procedimento, justamente porque a descriminalização não vem sem políticas de educação sexual e planejamento. Mas até parece que o patriarcado vai deixar isso transparecer. Melhor chamar todo mundo de assassinae comedora de criança. Caro machismo, tenha alguma decência.
Longe de ser perfeito, o feminismo também tem seus defeitos e incoerências. É o fruto da pluralidade de suas vertentes e também exige autocrítica. O ponto é que nem de longe esses defeitos equiparam-se a opressão histórica contra as mulheres, sempre baseadas em crenças flutuantes que tentam se impor como verdades atemporais. Já passou da hora destas crenças contraditórias serem expostas e dissecadas como merecem. Quanto mais fazemos isso, mais eles se apavoram com a fragilidade de seus argumentos. Caro machismo, o seu fim está chegando.