O texto deixado pelo homem aponta para a reconfiguração do ódio às mulheres após a vigência de leis penais mais duras quanto à violência de gênero e após um aumento da presença nas mídias do discurso feminista.
(Blog #AGORAÉQUESÃOELAS, 03/01/2017 – acesse no site de origem)
2017, 12 mortos na noite de réveillon. Nove mulheres, uma criança e dois homens foram assassinados. O feminicida se matou em seguida. Ele deixou uma carta em que enunciava as razões do crime: acabar com as vadias e com as famílias das vadias. A carta têm trechos endereçados ao filho de 8 anos que também foi assassinado por ele: “tenho raiva das vadias que se proliferam e muito a cada dia se beneficiando da lei vadia da penha! Não posso dizer que todas as mulheres são vadias! Más todas as mulheres sabem do que as vadias são capazes de fazer!”
O ódio às mulheres, a extensão desse ódio aos filhos e à família e a premeditação do suicídio após o feminicídio não são novidade. Também não é novo que o dia escolhido para o feminicídio seja um dia de festa. Pesquisas mostram que as mulheres sofrem mais violência nos feriados e finais de semana e que as crianças morrem vitimadas pela violência de gênero que assassina suas mães. Para as mulheres que estão, estiveram ou estarão em relacionamentos com homens violentos é arriscado comemorar. O perigo é maior quando a rotina se suspende. A festa e seus condicionantes evidenciam o ódio.
Há, todavia, algo novo no caso: o texto do feminicida tornado público. Em que o texto de um feminicida pode ajudar?
O que está sendo chamado de chacina é prova brutal da falha do Estado em defender e proteger aquelas mulheres do ódio e da violência. Avaliar o escrito diante de tantos corpos sem vida é pouco e duro, mas é tempo de se investigar as razões do ocorrido, tempo de buscar responsabilidades, hora de se denunciar a vida insegura que as mulheres levam. O texto deixado pelo homem não registra apenas as circunstâncias dessa suposta chacina, há algo que ultrapassa o caso e revela parte do que as leis penais de proteção à mulher provocaram na sociedade brasileira.
A hipótese é que a misoginia está em processo de reorganização.
O texto deixado pelo homem aponta para a reconfiguração do ódio às mulheres após a vigência de leis penais mais duras quanto à violência de gênero e após um aumento da presença nas mídias do discurso feminista. Presença essa que, em alguma medida, foi possibilitada pela abertura ao tema provocado por essas mesmas leis penais. Ainda que, em concreto, essas leis tenham falhado em proteger as mulheres mortas em Campinas, elas obrigaram à reorganização do discurso, exigiram que o feminicida se justificasse perante essa nova ordem normativa, a ordem da Lei Maria da Penha, do feminicídio, a ordem dos direitos humanos.
Não há nada de novo na identificação das mulheres como vadias, tampouco é novo o desejo de as exterminar. Mas é novo dialogar com o feminismo e suas leis. Leis que o texto feminicida, como tantos outros escritos nestes dez anos coloca sob suspeita e deslegitima, invertendo sentidos.
Há uma misoginia atualizada neste texto. Ao trocar Maria por vadia ao se referir à Lei Maria da Penha e se colocar como vítima de um “sistema feminista e umas loucas”, o feminicida reconhece o poder do movimento de mulheres e de suas conquistas.
Na carta, o assassinato de todas as vadias é enunciado como um ato a inspirar outros homens.
O que ocorreu em Campinas não foi uma chacina, mas um ato de terror às mulheres. Mas é também oa prova de que estamos na trilha certa. Precisamos das leis penais que combatem a violência de gênero. Precisamos da Lei Maria da Penha. Precisamos do tipo penal do feminicídio. Sabe-se que o direito penal não vai salvar as mulheres da misoginia, lei nenhuma o fará. Mas a utilidade de um crime que responsabilize o autor pelo ódio às mulheres não se reduz por isso. Infelizmente, a importância das leis que reconhecem os direitos das mulheres não se mede apenas quando elas conseguem prevenir a violência, quando falham também mostram o valor que têm. A carta de Campinas é a prova disso.
Janaína Penalva é professora adjunta da Faculdade de Direito da UnB.