Casos aumentam, mas estupro ainda é crime subnotificado

02 de setembro, 2017

Lei foi alterada em 2009 para abarcar todo constrangimento e violência com fins libidinosos. Em São Paulo, número de casos registrados pela polícia no primeiro semestre de 2017 cresceu 31%

(G1, 02/09/2017 – acesse no site de origem)

O mais recente caso de assédio sexual no transporte público de São Paulo e a repercussão da decisão da Justiça e do Ministério Público de liberar o agressor trouxeram à tona o debate da violência de gênero.

Por qual razão um homem com ao menos 15 passagens pela polícia é solto após ejacular no pescoço de uma mulher dentro de um ônibus? O crime, registrado pela Polícia Civil como estupro, foi convertido pelo juiz em contravenção penal, considerado um delito de menor gravidade.

Mas o que diz a lei? O que caracteriza crime de estupro? Como as vítimas devem proceder em casos de abuso? Quais os entraves para combater tais crimes e qual o aparato de segurança oferecido pelos agentes públicos?

Embora sejam considerados casos subnotificados, porque nem sempre há um boletim de ocorrência, os registros de estupro aumentaram na capital paulista em 31% no primeiro semestre, em comparação com o mesmo período de 2016. No estado, o índice foi similar: 30% de aumento. Os dados são da Secretaria da Segurança Pública (SSP) do estado.

O G1 lista abaixo as principais questões relacionadas ao tema e as respectivas respostas:

– O que caracteriza crime de estupro?

Embora o Brasil tenha um código penal antigo, a lei que incide sobre crimes contra a dignidade e liberdade sexual foi alterada há menos de uma década, em 2009, por uma demanda de movimentos de enfrentamento à violência contra mulheres, às crianças e aos adolescentes. Desde então, o crime de estupro passou a ser qualquer conduta, com uso de ameaça ou violência, que atente contra a dignidade e liberdade sexual de alguém. Não é preciso haver penetração para ser caracterizado como estupro.

“O crime de atentado violento ao pudor não existe mais e o crime de estupro passou a abarcar todo o constrangimento, a violência, com fins libidinosos. Qualquer ato com fim de prazer sexual a uma das pessoas, no caso, o agente, sem o consentimento da outra pessoa, é estupro”, resume a advogada e co-fundadora da Rede Feminista de Juristas, Marina Ganzarolli.

A masturbação, o sexo oral, tudo isso sem consentimento está abarcado e deve ser considerado como crime de estupro, exemplifica a advogada. “A partir do momento que houve toque, o crime deve ser considerado estupro. E isso não só para os crimes cometidos dentro de transporte público.”

– Como as vítimas devem proceder em casos de abuso?

A recomendação é procurar a delegacia mais próxima. Quando o assédio é flagrante, é necessário fazer o registro na hora. Por lei, as vítimas têm até seis meses para fazer a denúncia.

A Polícia Civil é a responsável pelo registro do boletim de ocorrência. Em casos de estupro com penetração, a vítima deve receber rapidamente a pílula do dia seguinte e a profilaxia para prevenção ao vírus HIV, à hepatite e outras Doenças Sexualmente Transmissíveis. Os remédios são fornecidos gratuitamente pelos serviços de saúde pública até 72 horas após o crime.

Após o registro, a vítima é encaminhada ao Instituto Médico Legal para exame de corpo delito. A denúncia também pode ser feita em uma Delegacia de Defesa à Mulher.

Vídeo mostra a movimentação de passageiros revoltados e policiais momentos após uma mulher ser vítima de assédio dentro de ônibus na Avenida Paulista

– Qual a importância de registrar a ocorrência?

A advogada Marina Ganzarolli afirma que o registro da ocorrência, embora infelizmente não seja sinônimo de justiça no Brasil, serve como proteção para a vítima.

“Eu costumo dizer: faça o boletim de ocorrência porque você só pode fazer no período de seis meses do fato. Esse prazo não é razoável, mas como a legislação tem esse prazo, você só tem seis meses para fazer esse B.O. Se o agressor cometer uma nova violência contra você, terá o registro da primeira. E mais do que isso, se ele cometer uma violência contra outra mulher, o seu boletim vai ajudar a outra vítima.”Nos casos de assédio em transporte público, o registro pode impedir que o suspeito cometa novos crimes. “O agressor sexual tem a característica de predador. Toda oportunidade que ele tem, irá cometer o crime novamente”, alerta a jurista.

– A vítima e o agressor ficam juntos na delegacia?

Segundo a advogada Marina Ganzarolli, na maioria dos casos, a vítimas e o agressor não são mantidos na mesma sala à espera do registro da ocorrência nas delegacias. Ela ainda alerta que é direito da mulher ser encaminhada em viatura separada do agressor.

A jurista afirma que o problema é durante a espera de encaminhamento quando o abuso ocorreu em transporte público. “Infelizmente, no Metrô as denúncias são reiteradas de que eles colocam na salinha os dois juntos enquanto acionam a polícia”.

A Secretaria da Segurança Pública garante que, tanto na Delpom como em qualquer outra delegacia, as vítimas são encaminhadas para salas separadas dos autores, dando prioridade ao atendimento com profissionais mulheres, para evitar constrangimento ou qualquer outro tipo de desconforto.

– A vítima tem que fornecer provas?

Para fazer a denúncia, basta o depoimento da vítima. A partir do depoimento é que se inicia um inquérito policial, que irá recolher as provas. Também não é obrigatório levar nenhuma testemunha. “O comum do crime sexual é não ter testemunha, porque ele ocorre em maior incidência dentro de residências”, destaca Marina Ganzarolli.

– O constrangimento na delegacia

Muitas vítimas relatam ter vivido situações constrangedoras durante o depoimento, aponta a advogada. “Na violência contra mulher, precisamente pelo machismo, as perguntas na delegacia visam buscar uma justificativa para o crime. Buscam naturalizar a violência. E é isso que gera a insegurança a influencia na subnotificação.”

Após denunciar um caso de estupro sofrido por um motorista do aplicativo Uber, a escritora Clara Averbuck publicou um vídeo dizendo que não iria registrar a ocorrência na delegacia. Ela justificou a decisão afirmando não confiar no sistema e serviço de atendimento às vítimas.

“Estão me pressionando para fazer denúncia na delegacia. Essa decisão é minha, não confio no sistema, já fui mil vezes na delegacia, já levei mulheres lá, já vi o tratamento que é dado. B.O. não é um documento mágico do Harry Potter que vai te defender. Não significa que vão prender o cara.”

“Violência sexual é crime que quem tem que provar é a vítima. Eu não tenho sêmen em mim, eu não tenho nada em mim. Eu tenho só essa marca de quando ele me derrubou no chão. Como é que eu vou provar alguma coisa? Não tem como.”

A escritora Clara Averbuck mostrou ferimentos que teve no rosto após ser vítima de estupro por motorista do Uber (Foto: Reprodução/Facebook)

– Como denunciar em caso de assédio no transporte?

  • Ônibus municipais
    Nos casos de abuso sexual no interior dos ônibus, a SPTrans recomenda que o motorista seja comunicado imediatamente e conduza o veículo até a delegacia de polícia mais próxima. Lá, a vítima poderá registrar um boletim de ocorrência e receber amparo das autoridades policiais, que tomarão as providências cabíveis.
    Nos casos em que o autor do assédio seja o motorista ou cobrador, além do boletim de ocorrência, a vítima deverá registrar a agressão nos canais de comunicação da SPTrans, pelo telefone 156 ou pelo site www.sptrans.com.br/sac, para que medidas imediatas possam ser adotadas.
  • CPTM
    A CPTM orienta que, ao sofrer ou presenciar um abuso sexual nos trens ou estações da CPTM, a pessoa deve informar o fato imediatamente a um funcionário, apontando o autor, a fim de que o agressor seja conduzido à delegacia de polícia mais próxima para o registro do Boletim de Ocorrência (BO). Os usuários podem ainda acionar a Companhia por meio do serviço do SMS-Denúncia (97150-4949).
    A CPTM defende que em caso de abuso sexual é importante que sejam apontadas as características e roupas do autor do crime para facilitar sua localização e detenção. O serviço diz garantir anonimato ao denunciante e a mensagem é recebida no Centro de Controle de Segurança, que destaca os agentes mais próximos para verificação imediata e providências.
  • Metrô
    No caso do Metrô, além de procurar um funcionário no local da ocorrência, o usuário pode recorrer ao aplicativo Metrô Conecta ou ao serviço SMS-Denúncia (11 97333-2252). A mensagem é recebida no Centro de Controle de Segurança, que destaca os agentes mais próximos da ocorrência para verificação e providências.
  • EMTU
    A Empresa Metropolitana de Transportes Urbanos afirma que os colaboradores das concessionárias e permissionárias responsáveis pela operação dos ônibus metropolitanos foram treinados e estão orientados a denunciar o criminoso pelo telefone 190 do Centro de Operações da Polícia Militar e prestar total e irrestrito apoio à vitima.

– Por que um homem com ao menos 15 passagens pela polícia por suspeita de estupro e assédio é solto após ejacular no pescoço de uma mulher dentro de um ônibus?

Na avaliação de Marina Ganzarolli, há recursos para coibir assédio sexual dentro de transporte público, mas a lei não é respeitada ao enquadrar os casos como crime de menor potencial ofensivo. Ou seja, o problema não está na ausência de legislação, mas na aplicação dela. “Menor potencial ofensivo para quem? Para as mulheres, com certeza, não”, rebate.

“Ejacular em alguém é um ato sexual, tem fim libidinosos. […] É tão bizarra essa decisão porque como que um ato sexual sem consentimento pode não causar constrangimento? Que pessoa é essa que sofre uma violência sexual e não foi constrangida? Essa pessoa não existe. Qualquer pessoa, inclusive esse magistrado, na mesma situação que essa vítima, estaria igualmente constrangido, igualmente em estado de choque”, complementa.

A promotora Fabiola Sucasas, acredita que exista um campo minado na tipificação em relação às violações sexuais, o que favorece decisões errôneas.“Você tem desde uma pena de multa até uma pena de 15 anos. Esse é um espaço para interpretações variadas que podem levar às injustiças, que, na minha opinião, foi o que aconteceu”, opina.

Ela avalia positivamente a legislação atual, mas crê que a variedade de graduação de penalidade gere insegurança aos juízes. “Eu acredito que a lei deva ser mais especifica sobre essas condutas. É uma confusão que se faz que acaba gerando esse tipo de revolta. Para que as penas possam ser proporcionais aos fatos, e não tenham essa elasticidade. Uma lei que não exclua a que já tem”, sugere.

– Presidente do TJSP fala em mudança

Nesta sexta-feira (1°), o presidente do Tribunal de Justiça do São Paulo, Paulo Dimas de Bellis Mascaretti, divulgou nota pedindo uma mudança na lei para casos de assédio sexual.

“O Tribunal de Justiça realizará, nos próximos dias, encontro para iniciar debate com representantes da sociedade civil e das instituições públicas em prol de mudança legislativa que atenda os desafios do mundo contemporâneo”, afirmou.

Lívia Machado

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