Jean-Pierre Lacroix elogia atuação do Brasil e não vislumbra missão a curto prazo na Síria
(O Globo, 04/12/2017 – acesse no site de origem)
Após uma experiência no Haiti considerada muito bem-sucedida por parte da ONU, o Brasil é altamente elogiado pelo subsecretário-geral da entidade para Operações de Paz, Jean-Pierre Lacroix. Indicado ao cargo em fevereiro, o diplomata francês veio ao país para debater o papel das tropas brasileiras na recém-desmobilizada missão de estabilização do país caribenho, em meio a negociações para uma participação (e eventual liderança) agora na República Centro-Africana. Segundo Lacroix, a expertise dos militares brasileiros foi fundamental para promover um Estado e instituições mais independentes no Haiti. E, diante de questionamentos sofridos pela ONU por sucessivas denúncias de abuso sexual contra soldados que participam de suas missões, pregou uma nova política de tolerância zero e transparência total para garantir a justiça. Ele ainda afirmou não enxergar chance de implantar a curto ou médio prazo uma operação na Síria, em função dos persistentes enfrentamentos no país árabe, que não cessam após várias negociações infrutíferas entre as principais potências globais.
O senhor esteve visitando autoridades militares e políticas do Brasil. Como foi ver que o país se mantém comprometido com as forças de manutenção de paz?
O Brasil adquiriu uma experiência muito grande nas nossas missões de paz. Faz parte dos países que têm uma das expertises mais importantes na área, com conhecimento concreto de o que significa fazer parte destas operações. Agradecemos muito pela contribuição e pela qualidade e comportamento das tropas brasileiras. A relação estabelecida entre as forças brasileiras que lideraram a Minustah (missão no Haiti), a população e autoridades locais foi muito importante.
Como o senhor classifica a experiência da Minustah e sua recente desmobilização, apesar dos problemas que o Haiti ainda encontra?
A situação do Haiti hoje é muito melhor do que quando a missão foi estabelecida (em 2004, na esteira de turbulências políticas e violência que culminaram com a destituição do presidente Jean-Bertrand Aristide). É claro que ainda há desafios importantes, mas a melhora permitiu reorientar as tarefas por lá. O Haiti é hoje um país com autoridades legítimas, com presidente, a Assembleia Nacional e todos os níveis de governo eleitos democraticamente. O nível de segurança e de estabilidade é muito mais alto, o que faz com que agora nos centremos nos reforços do Estado e das instituições estatais, em particular a Justiça, a polícia e as prisões, o que é necessário para melhorar a ordem pública. Isso foi possível porque a Minustah foi exitosa, e acho que isso aconteceu porque o Brasil desempenhou seu papel tão importante de liderança com ideias e táticas inovadoras, reduzindo a violência comunitária e fazendo ações de manutenção e desenvolvimento de paz.
E quanto ao comportamento das tropas?
Nossas missões sofreram muito com casos de abuso sexual, que são totalmente inaceitáveis, mas nunca tivemos problemas com os contingentes do Brasil (nota da edição: apesar de denúncias contra soldados do país, a Minustah nunca relatou qualquer caso concreto). Os oficiais brasileiros tomaram muitas medidas para impedir e prevenir. É muito importante contar com esse nível de conduta e disciplina exemplar.
Um dos maiores questionamentos à atuação da Minustah foi a epidemia de cólera (a ONU admitiu que soldados de suas tropas trouxeram a bactéria, que deixou mais de 9 mil mortos desde 2010). Como têm sido a resposta e o reparo a isso?
A ONU tem que assumir o que aconteceu e fazer o possível para reparar as vítimas da epidemia. Todas as agências da ONU que podem ajudar adotaram programas para melhorar a infraestrutura sanitária do Haiti e para tratar vítimas. Além disso, foi nomeada pelo secretário-geral (António Guterres) uma representante especial para o Haiti, Josette Sheeran, que esteve no país recentemente com as autoridades locais e os atores que apoiam o Haiti as ações para responder a essa situação.
O senhor destaca os casos de abuso sexual como foco para seu mandato?
Por um lado, este não é um problema somente para as missões de paz, mas um problema para todo o sistema das Nações Unidas, que tem que ser tratado de uma maneira global. No ponto de vista das missões, é particularmente inaceitável que as pessoas responsáveis por restabelecer a paz e ajudar a população tenham esse tipo de atitude. Agora, temos uma política de tolerância zero, muito forte e estrita. Acho que é de responsabilidade coletiva implementá-la e fazer com que, a nível das missões, as informações sobre os casos possam chegar até a liderança das operações com transparência, e que nós sejamos reativos, sem aguardar meses antes de agir.
Como isso é feito?
Agora temos mecanismos que permitem informar à liderança mesmo quando o denunciante não pertence à missão, anonimamente, sobre casos e alegações de abuso sexual. A nível de quatro grandes missões, nomeamos um advogado para fornecer apoio às vítimas, que são o foco de nossas políticas. É importante prevenir e impedir outros casos, e ser reativo quando há novas alegações. Agora acho que há um entendimento e reatividade melhor dos Estados sobre o assunto. Estamos aqui, mas temos que estar lá, fazendo mais esforços por uma implementação completa desta política.
O que o senhor espera, num todo, de seu mandato? Ampliação das forças da paz, novas operações?
O importante é fazer melhor o que fazemos. Melhorar a eficácia para poder proteger as populações e implementar melhor nosso mandato. Fazer mais esforços com nosso parceiros para reforçar o Estado. Esta é a prioridade. Nossa ação está centrada nas populações que defendemos, então o teste vem de lá. Não significa somente enviar policiais, militares, civis, mas sim fazer parte de um trabalho coletivo.
O senhor acredita que haja uma perspectiva de cessar-fogo próxima na Síria para que eventualmente a ONU possa ter uma atuação em campo?
É uma situação bem complicada, onde ainda há enfrentamento entre vários protagonistas. A ONU está fazendo muitos esforços para ajudar no processo político de negociação e de reconciliação. Mas quando se trata da possibilidade de uma missão de paz, não vejo perspectiva ao menos ao curto e médio prazo.
A comunidade internacional tem dado uma resposta eficaz para os lugares em conflito, em termos políticos e de ajuda humanitária?
É muito importante destacar que, para poder atuar e fazer mais diferença particularmente nos processos de paz e na ajuda à população, precisamos de uma comunidade internacional unida, um Conselho de Segurança unido. Quando a comunidade internacional é mais coesa, o Conselho de Segurança consegue tomar decisões com unanimidade e numa direção conjunta e forte, aumentando em muito as possibilidades para que ajudemos nos processos de paz e na proteção.