(UOL, 19/08/2016) Pontos-chave
- A Lei Maria da Penha (Lei 11.340), sancionada em 7 de agosto de 2006, completa dez anos de vigência. Ela foi criada para combater a violência doméstica e familiar, garante punição com maior rigor dos agressores e cria mecanismos para prevenir a violência e proteger a mulher agredida.
- De acordo com a legislação, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial.
- Hoje essa lei é a principal ferramenta legislativa na questão da violência doméstica e familiar contra as mulheres no Brasil. Ela também é considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) como uma das três mais avançadas do mundo nessa questão.
- Com a Lei Maria da Penha, a violência contra a mulher torna-se visível e deixa de ser interpretada como um problema individual da mulher e passa a ser reconhecida como problema social e do Estado, que deve prever assistência, prevenção e punição para esses casos.
“Em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Esse ditado popular revela muito sobre como o país tratou a violência doméstica e contra a mulher. Isso porque durante séculos, esse tipo de agressão nem sempre foi considerada uma violência pela sociedade brasileira. Essa frase naturaliza um ato abusivo, como algo sem importância e de interesse particular, uma situação que não precisa de ajuda ou “não é problema meu”.
A cada ano, mais de um milhão de mulheres são vítimas de violência doméstica no país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Outros dados mostram a gravidade da questão: a cada cinco minutos uma mulher é agredida no Brasil e uma em cada cinco mulheres já sofreu algum tipo de violência de um homem (conhecido ou não) e o parceiro é responsável por 80% dos casos reportados. Os dados são de uma pesquisa de 2010 da Fundação Perseu Abramo.
Apesar da gravidade do problema, a previsão de uma lei específica no Brasil que trata da violência contra as mulheres, em especial nas relações domésticas familiares e afetivas, é algo recente e só ocorreu com a Lei Maria da Penha (Lei 11.340), sancionada em 7 de agosto de 2006, e que completa dez anos de vigência.
A lei recebeu o nome em homenagem à farmacêutica Maria da Penha Fernandes. Em 1982, ela sofreu duas tentativas de assassinato por parte do então marido. Na primeira, depois de um tiro nas costas, ficou paralítica. Ela enfrentou luta judicial de quase 20 anos para vê-lo punido. Em 1998, em razão da morosidade no julgamento do ex-marido, Maria da Penha denunciou seu caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos denunciando a tolerância do Estado brasileiro com a violência doméstica, com fundamento na Convenção Belém do Pará e outros documentos de direitos humanos no sistema de proteção da Organização dos Estados Americanos. Graças à sua iniciativa, o Brasil foi condenado pela Corte, que recomendou ao país a criação de lei para prevenir e punir a violência doméstica.
Em 2006, o Congresso Nacional aprovou a Lei Maria da Penha (Lei 11.340), que foi o ponto de partida jurídico para enfrentar a violência doméstica e familiar contra as mulheres no Brasil e hoje é considerada como o principal dispositivo legal nessa questão. Ela também é considerada pela ONU como uma das três mais avançadas do mundo no tema, atrás apenas das leis da Espanha e do Chile.
Além de inovadora, a lei teve grande repercussão social e hoje é considerada como uma das leis mais conhecidas pelos brasileiros. Segundo a pesquisa Violência e Assassinatos de Mulheres (Data Popular/Instituto Patrícia Galvão, 2013) 98% da população conhece a legislação. Para 86% dos entrevistados, as mulheres passaram a denunciar mais os casos de violência.
O que diz a lei
Desde 1988 a Constituição brasileira já trazia o princípio da igualdade entre homens e mulheres, em todos os campos da vida social. O artigo 226 diz que “o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.
A inserção desse artigo atribui ao Estado a obrigação de intervir nas relações familiares para coibir a violência, bem como de prestar assistência às pessoas envolvidas. No entanto, os casos de violência contra a mulher eram considerados de menor potencial ofensivo e a punição dependia muito da interpretação do juiz.
Até 2006, havia um massivo arquivamento de processos de violência doméstica. Eram comuns casos em que agressões físicas foram punidas apenas com o pagamento de cestas básicas. Ou ainda, situações fatais, em que o agressor mata a mulher e tem sua responsabilidade diminuída: a mulher cometeu adultério e o marido acaba sendo absolvido na Justiça por estar defendendo a sua honra ou o assassino que cometeu “um homicídio passional” por ciúmes.
Nesse contexto, muitas brasileiras não denunciavam as agressões porque sabiam que seriam ignoradas pelas autoridades e os companheiros não seriam punidos. Outros fatores também contribuem para que a mulher não consiga sair da relação com o agressor: ela é ameaçada e tem medo de apanhar de novo ou morrer se terminar a relação, ela depende financeiramente do companheiro, tem vergonha do que a família e amigos vão achar, acredita que o agressor vai mudar e que não voltará a agredir ou pensa que a violência faz parte de qualquer relacionamento.
A Lei Maria da Penha foi amparada no artigo 226 e em acordos internacionais, altera o Código Penal e aumenta o rigor nas punições para agressões de pessoas próximas. A lei tirou da invisibilidade e inovou ao tratar a violência doméstica e de gênero como uma violação de direitos humanos.
A Lei 11.340 configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial:
I – no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;
II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;
III – em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.
Entre as inovações, está a velocidade no atendimento aos casos. Depois que a mulher apresenta queixa na delegacia de polícia ou à Justiça, o juiz tem o prazo de até 48 horas para analisar a concessão de proteção. Além disso, a Lei Maria da Penha ampara a mulher dentro e fora de casa. Também considera a agressão psicológica e patrimonial como violência doméstica e familiar contra a mulher, ou seja, abrange abusos que não deixam marcas no corpo.
A aplicação da lei Maria da Penha contempla ainda agressões de quaisquer outras formas, do irmão contra a irmã (família); genro e sogra (família, por afinidade); a violência entre irmãs ou filhas (os) e contra a mãe (família). Além disso, garante o mesmo atendimento para mulheres que estejam em relacionamento com outras mulheres. Recentemente, o Tribunal de Justiça de São Paulo garantiu a aplicação da lei para transexuais que se identificam como mulheres em sua identidade de gênero.
Medidas protetivas
A Lei Maria da Penha criou dois tipos de medidas protetivas: à ofendida (mulher em situação de violência) e medidas obrigatórias ao agressor (autor da violência), de acordo com o risco que a mulher corre.
As medidas protetivas buscam oferecer um atendimento integral e qualificado às mulheres, a partir do contexto da violência, como encaminhar a ofendida e seus dependentes a um programa de proteção ou de atendimento, determinar o afastamento da ofendida do lar e a separação de corpos.
Em relação ao autor da violência, a lei prevê que ele não pode cumprir penas alternativas ou ser punido com multas, e pode ser enquadrado na suspensão da posse ou restrição do porte de armas, na prisão preventiva do suspeito, no afastamento do lar ou local de convivência com a ofendida, na proibição de contato com a ofendida e no pagamento de pensão alimentícia à família.
Serviços públicos de apoio
Com a vigência da lei, o governo teve que investir na criação de serviços públicos de apoio à mulher e o problema passou a existir “oficialmente” na esfera pública. Foram fortalecidas as Delegacias de Atendimento à Mulher, criados novos juizados especializados de violência doméstica e familiar contra a mulher, além de amparar serviços de assistência, como a Casa da Mulher Brasileira e a Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180.
A violência contra a mulher torna-se visível e deixa de ser interpretada como um problema individual da agredida e passa a ser reconhecida como problema social e do Estado, que deve prever assistência, prevenção e punição para esses casos.
Apesar de significar um marco na questão da violência doméstica, ainda falta muito para que a violência contra a mulher terminar. A Lei Maria da Penha precisa ser implementada nos Estados de forma eficiente. Além disso, é preciso mudar a cultura de violência e o machismo da sociedade brasileira. Uma questão que demanda educação, trabalho e tempo.
A Lei do Feminicídio
A Lei Maria da Penha também está salvando vidas. Em 2015, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) divulgou um estudo que estimou o impacto da lei nas taxas de homicídios de mulheres. Segundo a pesquisa, a lei contribuiu para reduzir, em 10%, o número de feminicídios no Brasil. O termo “feminicídio” é usado para designar o assassinato de uma mulher pelo simples fato de esta ser mulher.
A Lei Maria da Penha também abriu caminho para que fosse criada a Lei do Feminicídio (Lei 13.104). Sancionada em 2015, a lei classifica o homicídio qualificado como crime hediondo, o que aumenta a pena para o autor. Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil ocupa o 5º lugar no ranking global de homicídios de mulheres.
Carolina Cunha, da Novelo Comunicação
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