Após muito tempo sendo desprezados, depoimentos de mulheres que sofreram abusos sexuais, muitas delas menores de idade, causam comoção nos EUA e geram uma onda de demissões
(El País, 28/01/2018 – acesse no site de origem)
Kyle Stephens contou aos seus pais. Larissa Boyce, à sua treinadora. Amanda Thomashow, a um médico. À primeira não deram crédito, à segunda disseram que estava se confundindo, e à terceira argumentaram que colocar os dedos na genitália de outra pessoa não é algo “sexual”. E foi assim que Larry Nassar, o maior predador sexual do esporte norte-americano, criou um universo obscuro, onde durante mais de 20 anos abusou de jovens, adolescentes e até crianças. Durante esse período, a Federação de Ginástica dos Estados Unidos e a Universidade Estadual de Michigan acobertaram o comportamento desse famoso profissional, ignorando as sucessivas queixas e defendendo a reputação do médico da equipe olímpica norte-americana, onde também abusou de estrelas como Simone Biles e Aly Raisman. Nesta semana, suas 156 vítimas acabaram com anos de sofrimento e derrubaram seu monstro, condenado a até 175 anos de prisão. Seus depoimentos abalaram as estruturas de um esporte que tem brilhado graças às suas atletas.
A pressão já surte efeito. Nesta sexta-feira, o Congresso norte-americano anunciou a abertura de uma CPI para determinar os responsáveis além de Nassar. Na quinta-feira, o presidente do Comitê Olímpico dos EUA também anunciou uma investigação independente e ameaçou cassar a certificação da federação se esta não tomasse providências. Em meio ao julgamento de Nassar, todos os dirigentes dessa entidade, incluindo o presidente e seu vice, pediram demissão ao longo da semana, pressionados pelos testemunhos acusatórios das vítimas. Um presidente anterior já havia deixado o cargo em março de 2017.
Na Universidade Estadual de Michigan, tanto a reitora, Lou Anna Simon, como o diretor esportivo pediram afastamento. “À medida que as tragédias se politizam, a busca por culpados fica inevitável”, afirmou a reitora numa carta reticente, interpretada por algumas vítimas como uma nova tentativa de escapar da sua responsabilidade no caso Nassar. Além disso, a Federação rompeu seus vínculos com seu centro nacional de treinamento, a fazenda Karolyi, onde as ginastas olímpicas aperfeiçoavam sua técnica entre as competições – e onde o doutor Nassar, conforme detalharam as vítimas, também cometeu seus abusos. Era assim que Simone Biles, McKayla Maroney e Aly Raisman – a melhor geração da ginástica norte-americana em toda a história – passavam dos pódios e medalhas para a escuridão e solidão do consultório de Nassar.
Grandes patrocinadores, como a telefônica AT&T, a empresa de material esportivo Under Armour e a Procter & Gamble, revogaram seus contratos com a Federação. “Estamos ao lado das esportistas e esperamos que nossa decisão contribua para uma mudança”, afirmou outra empresa.
São só os primeiros resultados de uma luta que começou em 1997. Boyce, a primeira a erguer a voz, relatou os comportamentos inapropriados de Nassar à sua treinadora Kathie Klages, da Universidade Estadual de Michigan, mas esta minimizou as queixas e disse que sua pupila estava confusa. A jovem, de 16 anos, pediu desculpas ao médico na consulta seguinte. Outras ginastas expressaram as mesmas preocupações a Klages. Nada aconteceu. A treinadora se aposentou no ano passado com uma pensão completa, paga pela instituição educacional.
Desde então, houve pelo menos sete outros casos em que mulheres, todas elas ginastas, queixaram-se sobre abusos sexuais cometidos por Nassar. Em 2015, um ano antes de o caso ser revelado, um membro da equipe olímpica norte-americana informou à Federação sobre os supostos abusos do médico. A organização contratou um detetive particular e, meses depois, contatou o FBI. Nassar foi destituído, mas os dirigentes não tiveram o cuidado de alertar sobre o caso à Universidade, onde o médico continuou cometendo seus abusos até que o assunto explodiu na imprensa e ele perdeu o emprego, em setembro de 2016. “Pelo menos 14 treinadores, dirigentes esportivos, psicólogos e colegas de Nassar haviam sido alertados sobre os abusos”, escreveu Rachael Denhollander, a vítima que conseguiu iniciar a investigação criminal contra o médico, em um artigo.
Denhollander levou suas queixas à polícia em 2016. Poderia ter sido apenas mais uma na lista de vítimas ignoradas após lançar alertas sobre Nassar. E de certo modo foi mesmo. “Meu depoimento foi como atirar às cegas”, disse ela. Apesar da ampla documentação que forneceu, as autoridades trataram o caso com ceticismo. Só depois de ela narrar sua história ao jornal Indianapolis Star a investigação começou a ganhar força. Dezenas de mulheres admitiram ter sido vítimas. Quando o julgamento oral começou, em 16 de janeiro, havia 80 jovens dispostas a depor. Ao todo, 156 se postaram diante do pequeno microfone do tribunal de Lansing (Michigan). Outras permanecem no anonimato, segundo as vítimas.
Os testemunhos, ignorados durante décadas, finalmente causaram comoção nos EUA. Com uma infinidade de horripilantes detalhes, as vítimas contaram como Nassar introduzia seus dedos em suas vaginas e lhes perguntava como se sentiam e se isso aliviava suas dores. Relataram a perversa habilidade com que o médico, uma referência no seu campo por atender atletas de elite, usava sua reputação para manipulá-las. Muitas saíam do seu consultório pensando: “É Larry, ele não me faria mal”. O transtorno, interminável, atingia meninas de todas as idades. Sua vítima mais jovem tinha seis anos.
Na quarta-feira, minutos antes da leitura do veredicto, Denhollander foi a última a falar. Mais uma vez, confrontou o seu agressor, que, cabisbaixo, a olhava do banco dos réus. “Isto é o que acontece quando pessoas adultas em posições de autoridade não fazem o que devem. Quando as pessoas colocam suas amizades acima da lei”, disse a acusadora. Agora, ela – assim como todas as suas “irmãs sobreviventes” – pede uma mudança sistêmica na ginástica norte-americana, que já parece ter começado.
Nicolás Alonso