Projeto é considerado vitória de movimentos feministas, que agora lutam pela legalização do aborto
(O Globo, 13/07/2018 – acesse no site de origem)
Em dezembro de 2014, com apenas dois anos de idade, a pequena Brisa e seus dois irmãos, que na época tinham sete anos, viram como seu pai assassinou sua mãe, Daiana Barrionuevo, e atirou seu corpo num rio da província de Buenos Aires. A tragédia obrigou as crianças a passarem a morar com uma tia, que apesar de suas limitações econômicas assumiu o cuidado dos sobrinhos. Brisa é uma das 3.378 filhas e filhos de mulheres que foram vítimas de feminicídios na Argentina, nos últimos dez anos. E seu nome acaba de ser usado para batizar o recentemente aprovado Regime de Reparação Econômica para Meninas, Meninos, Adolescentes e Vítimas Colaterais de Casos de Violência de Gênero. A lei é mais uma vitória de movimentos feministas argentinos, em meio à batalha para aprovar a legalização do aborto no país.
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O projeto, elaborado pela ONG Casa do Encontro, que desde 2004 ajuda mulheres que sofrem violência de gênero, obteve sinal verde na Câmara argentina por unanimidade. Foram 203 votos a favor e nenhum contra. Um triunfo esmagador, comemorado por deputadas que apoiaram a iniciativa e associações civis como a Casa do Encontro, que atualmente ajuda em torno de 300 mulheres.
— O feminicídio evidencia a violência de gênero mais estrutural que ocorre em nosso país. Além das vítimas diretas, temos as colaterais, as crianças, que precisavam dessa ajuda do Estado — disse ao GLOBO a deputada Alejandra Martínez, presidente da Comissão de Família da Câmara.
A reparação será concedida a menores de idade e equivale ao valor da aposentadoria mínima, ou seja, em torno de US$ 288.
— Estimamos que existem 2.161 menores de idade que já poderão solicitar a reparação ao Estado, por casos ocorridos antes da aprovação da lei — comentou Alejandra, que também defende a legalização do aborto, projeto já aprovado na Câmara e que será votado no Senado no próximo dia 8 de agosto.
— Estamos vivendo um momento excepcional de luta das mulheres. O clima no Congresso argentino é muito especial, porque as mulheres se uniram, apesar de pertencerem a diferentes partidos — disse a deputada.
Do lado de fora, a tensão é enorme. Alejandra é da província de Jujuy, no Norte da Argentina, região extremamente conservadora e onde a Igreja tem enorme influência. Nas últimas semanas, a deputada recebeu ameaças e evitou ir a eventos públicos para driblar ataques de pessoas e movimentos anti-aborto legal.
A Lei Brisa representa uma conquista fundamental para ONGs como a Casa do Encontro, que também participou do nascimento do movimento Nenhuma Menos, criado para denunciar a violência de gênero e que já expandiu sua influência a vários países do continente. Nos últimos anos, o Nenhuma Menos realizou passeatas gigantescas e convocou greves nacionais de mulheres, com altíssima adesão na Argentina e outros países, até mesmo na Espanha.
— Os dados que temos continuam sendo assustadores: nos primeiros quatro meses deste ano, uma mulher foi assassinada na Argentina a cada 32 horas — disse Ada Rico, diretora da Casa do Encontro.
A Argentina, afirmou, “está em sexto lugar no ranking de feminicídios da região. O país mais violento é o México”.
— Era fundamental encontrar a maneira de proteger os filhos das mulheres assassinadas. São dramas familiares terríveis, porque muitas vezes quem assume essas crianças não tem recursos para sustentá-las — explicou Ada.
Sua ONG tem uma longa lista de demandas que ainda não foram atendidas, entre elas, a criança de uma “licença de trabalho por violência de gênero” e a incorporação da temática sobre violência sexista nas escolas argentinas.
Em 2012, foi aprovada uma lei que modificou o Código Penal e passou a estabelecer condenações de prisão perpétua para casos de feminicídio. Para assassinatos ocorridos antes de 2012, a pena máxima é de 25 anos. Isso é o que espera-se que seja anunciado hoje, no caso da jovem Erica Soriano, que há oito anos foi vítima de quem era seu parceiro, já condenado por homicídio.
— Esperamos que sejam 25 anos, foi o que pedimos à Justiça. Nossa luta é permanente e a próxima meta é trabalhar mais na prevenção — assegurou Ada.
Nos últimos dez anos, de acordo com dados da ONG, ocorreram 2.679 feminicídios na Argentina. Cerca de 66% das vítimas tinham entre 19 e 50 anos e em mais de 62% dos casos os assassinos foram seus maridos, namorados ou parceiros circunstanciais. A mesma pesquisa, realizada com informações recolhidas pela Casa do Encontro ao longo de uma década, mostraram que 51% das mulheres foram mortas em suas casas. Um de cada quatro feminicídios foi cometido com armas de fogo.
Janaína Figueiredo