Desarmação, por Júnia Puglia

06 de janeiro, 2017

O que eu queria mesmo é que os homens e mulheres que tentam justificar o que aconteceu tivessem a oportunidade de se desarmar e refletir profundamente sobre a impossibilidade da violência como instrumento de construção de alguma coisa, sobre os sofrimentos terríveis impostos pelas desigualdades de poder nas relações afetivas, sobre homens e mulheres que consideram parceiros e filhos como suas propriedades e, portanto, disponíveis à sua vontade, sem qualquer preocupação com construção de relacionamento, afeto, respeito e compartilhamento.

A temporada de fim de ano foi tranquila e relaxada. Cercada de pessoas amáveis, num clima de serena celebração, encerrei 2016 em paz. Aliás, no plano pessoal, não posso reclamar dele.

No primeiro de janeiro, passei pela notícia do massacre em Campinas, vi do que se tratava e mudei de assunto na mesma hora. Não comentei com ninguém, já sabendo que em algum momento viria à tona. Enrolei o quanto pude, até que retomei a frequência às redes sociais e aos sites de notícias.

Num enredo planejado em detalhes, Sidney invadiu a festa familiar de Isamara armado, matou quem viu pela frente, inclusive João Victor, o filho de oito anos, e a si mesmo. Seguiu-se uma avalanche de reações estarrecidas, consternadas, indignadas por motivos vários, e acusações, justificativas, explicações, psicologia barata, ofensas, além de incríveis, mas nada surpreendentes, tentativas de proteger o assassino e responsabilizar a ex-mulher, que “deve ter aprontado muito” e “o feminismo” por toda a desgraça.

(O suicídio como fecho dramático é um clássico nestas situações-limite. Porém, para o bem e a preservação da vida de muita gente, esta lógica deveria ser invertida. Se já estava decidido pelo autor, que fosse a abertura, e não o encerramento da cena.)

Posso gastar aqui muitos parágrafos lamentando o acontecido e discorrendo sobre os efeitos nefastos do machismo e a escalada do ódio e da violência, alimentados por ideias fascistas travestidas de senso comum. Posso passar horas tentando explicar o quanto Isamara, João Victor e todos os que ali perderam a vida foram vítimas de um homem, como tantos outros, incapaz de lidar com o fato de que as mulheres têm o direito de buscar seus direitos, de se livrar de relações abusivas e violentas e viver em paz. As pessoas que normalmente me leem concordarão comigo, endossarão meus argumentos, considerarão que estarei prestando um serviço relevante, e eu confirmarei minha sensação de pessoa de bem, que escolheu o lado certo.

Mas o que eu queria mesmo é que os homens e mulheres que tentam justificar o que aconteceu tivessem a oportunidade de se desarmar e refletir profundamente sobre a impossibilidade da violência como instrumento de construção de alguma coisa, sobre os sofrimentos terríveis impostos pelas desigualdades de poder nas relações afetivas, sobre homens e mulheres que consideram parceiros e filhos como suas propriedades e, portanto, disponíveis à sua vontade, sem qualquer preocupação com construção de relacionamento, afeto, respeito e compartilhamento.

Queria que líderes religiosos parassem de instigar seus seguidores contra o inimigo errado, porque quem de fato destrói a família e os seus valores são a iniquidade, a violência, a tirania, a hipocrisia, o desamor e o desrespeito. Queria que nas escolas se pudesse falar abertamente sobre o direito de todas as pessoas a controlar a própria vida e a denunciar a violência e os abusos sexuais praticados em tantas famílias, e muitas outras coisas, que no imaginário coletivo pertencem ao território amaldiçoado do politicamente correto, mas que na verdade são os pilares da construção da saúde e da harmonia individual e familiar. Queria que o Estado exercesse de fato o seu papel de garantir os direitos e proteger a vida de todas as pessoas, e deixasse de lado o mimimi e o palavrório. Queria que as empresas passassem do lero dos programas de equidade de gênero para a formação de ambientes de trabalho que levassem a sério esses programas.

Tomara os que enchem a rede com insultos às mulheres e às feministas lessem este breve texto e tantos outros que foram escritos nos últimos dias, e refletissem sobre eles. Acho pouco provável. O que temos tido, desde que a internet facilitou enormemente a expressão individual, são certezas e opiniões despejadas em cascata, em lugar da discussão, do argumento e da reflexão. Mas isto não pode, não vai durar para sempre.

Júnia Púglia é cronista, mantém o blog De Um Tudo no Facebook.

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