Olhos penetrantes, corpo frágil, sorriso meigo, artista talentosa, segundo seu professor Marcelo Fernandes, do Curso de Música da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, “era desses talentos que nasce um em um milhão”; aluna dedicada, mestrado concluído, futuro? Tudo pela frente…
(Campo Grande News, 03/08/2017 – acesse no site de origem)
Ou melhor, quase tudo.
Aos vinte e sete anos, teve sua vida tragicamente destroçada pela ação covarde e brutal de assassinos frios que, movidos pelos sentimentos mais mesquinhos, não hesitaram em praticar um crime que chocou a sociedade sul-mato-grossense.
Segundo noticiado, um dos assassinos seria alguém com quem Mayara estaria mantendo um relacionamento, ou seja, pessoa de sua confiança, que, sem avisar e sem o consentimento dela, levou outro homem até o motel, local do crime, escondido no porta-malas do carro.
Descobertos, os criminosos contam sua versão dos fatos, que teriam mantido relações sexuais consentidas com a vítima e que, movidos pela intenção de vender seu carro, a assassinaram com golpes de martelo. Levaram seu corpo com a intenção de enterrá-lo, mas, depois, desistiram de tal intento e resolveram “desová-lo” no local conhecido como “Inferninho”.
O corpo foi encontrado parcialmente carbonizado, vestido apenas de calcinha.
Algumas particularidades deste caso chamam a atenção.
Primeiro, por o crime praticado implicar na perda de uma vida humana, que é o maior bem que possuímos.
Segundo, por ser a vítima uma jovem, bonita, talentosa, com um futuro promissor, amada pela família, querida pelos amigos e admirada pela comunidade.
Terceiro, pela crueldade com que o crime foi perpetrado – dois homens se utilizando de um martelo para golpear a vítima até a morte.
Quarto, pela forma com que a notícia foi veiculada por parte significativa da imprensa, revelando uma credibilidade absoluta à palavra dos criminosos e mais, um tratamento indigno e, sobretudo, extremamente sexista, com um indisfarçável desprezo à pessoa da vítima, fazendo um julgamento moral em cada colocação feita, em cada palavra não dita, mas subliminarmente colocada, em cada infeliz expressão posta.
Dificilmente isto ocorreria se a vítima fosse um homem.
Qual é efetivamente o papel da imprensa? Penso que seja noticiar um fato e, se essa notícia envolver um caso que esteja sendo objeto de uma investigação, a prudência recomenda, no mínimo, que as versões apresentadas sejam tidas como parciais, uma vez que o inquérito policial não foi concluído e, infelizmente, a vítima não pode apresentar a versão dela.
Agora, será que é possível imaginar a dor impingida aos familiares da vítima, ao terem uma filha, irmã, neta, ou seja, um ente querido, sujeita a uma morte violenta, abrupta, absurda, ainda sendo velada e exposta de uma forma tão cruel, ser vilipendiada por uma sociedade que discrimina, que desiguala e faz julgamentos e trata a mulher de uma forma tão sórdida?
Sempre me indignou, nos julgamentos submetidos ao Tribunal do Júri, a inversão de valores que é feita, na qual o acusado, para se livrar de uma acusação, utilizando-se da máxima de que no emprego do princípio do direito de defesa tudo lhe é possível, passa a atacar a vítima, que morre duas vezes, primeiro pela morte física, segundo, pela morte da sua honra, que é violentamente atacada.
E se a Mayara fosse sua filha, minha filha, filha de quem se arvorou no direito de apontar o dedo, de julgar, de justificar o injustificável? Coloquemo-nos no lugar do próximo para buscar entender sua dor. Por que a sociedade é tão complacente para com o criminoso e tão contundente para com a vítima?
Nada justifica a morte de uma menina como a Mayara, nada! Não venham com justificativas absurdas de cunho moral ou de qualquer outro fundo. Uma moça, não uma “mulher” como noticiado pela mídia, morreu. Foi barbaramente assassinada e isto é o que interessa.
Seus assassinos devem responder pelo brutal crime que praticaram. Não que isso vá trazer Mayara de volta, mas é o mínimo que a sociedade pode apresentar como resposta a este estado de violência praticado contra as mulheres, que beira uma guerra civil.
Mulheres estão sendo discriminadas, mulheres estão sendo espancadas, mulheres estão sendo estupradas, mulheres estão morrendo!
Segundo relatório de pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, no 9° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram registrados 47.646 casos de estupros em todo o país em 2014, o que significa uma média de um estupro a cada 11 minutos. Todavia, segundo dados no Anuário, apenas 35% dos casos são registrados.
Pesquisa DataFolha divulgada em 2016 revelou que 37% da população concorda com a afirmação de que “Mulheres que se dão ao respeito não são estupradas”. Nesse sentido, 42% dos homens acreditam que as mulheres que se dão ao respeito não são estupradas. Os números evidenciam a responsabilização da mulher pela ocorrência dos crimes de cunho sexual.
Dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo retratam uma preocupante estatística de violência contra mulheres no mês de junho de 2017 – estupro consumado: total de 34 casos[1]. Estes são os casos notificados.
Até quando vamos assistir impassíveis a tudo isto e ainda justificar esta violência toda pelo comportamento da vítima?
É preciso sair da letargia em que nos encontramos, não aceitar a violência como um processo natural, não aceitar que faça parte do nosso cotidiano. Viver sem violência é um direito de todos. Não morrer, não ser espancada, não ser estuprada, não ser discriminada é um direito de todas nós, mulheres e meninas.
Como mulher, Membro do Ministério Público, como mãe e como cidadã, sinto-me na obrigação de expor minha indignação por este e tantos outros casos de violência contra as mulheres em suas múltiplas formas de manifestação: latrocínio, roubo, agressão, feminicídio, estupro, todas representam violação dos direitos humanos das mulheres.
Minha solidariedade à família da Mayara, na esperança de que, além da saudade, prevaleça a justiça.
Jaceguara Dantas da Silva Passos é procuradora de Justiça