Mayara Amaral. Um crime que tem nome. E a voz das mulheres

03 de agosto, 2017

Caso de violonista morta em Campo Grande (MS) reacendeu debate sobre crimes de feminicídio e seu reconhecimento pela justiça.

(HuffPost Brasil, 03/08/2017 – acesse no site de origem)

“Mayara tinha história. Era mulher com ascendência indígena, que nasceu numa cidade de fronteira e vivia na periferia de Campo Grande (MS). Era alegria. Era o tereré. Era erudição, disciplina e dedicação extrema ao seu violão. Era o mestrado e sua pesquisa sobre mulheres compositoras na década de 70. Era bandeira. O feminino. Era a liberdade. E mesmo com esse feminicídio brutal, sua voz não vai ser calada.”
Luana Shabib

Em 24 de julho, Mayara Amaral foi dada como desaparecida. No dia seguinte, o seu corpo apareceu carbonizado em Campo Grande (MS). Ela foi atraída para um motel pelo homem com quem se relacionava. Lá, foi estuprada por ele e outro homem. Foi morta a marteladas e teve seu corpo queimado.

Foi mais uma vítima do feminicídio.

Mas o caso de Mayara foi registrado como latrocínio. De acordo com os investigadores, os homens planejaram o crime para roubar o carro da vítima. Questionado pelos policiais, o executor afirmou que “não sabia o que estava fazendo”.

O feminicídio é a instância máxima de controle da mulher pelo homem: o controle da vida e da morte, diz o relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre Violência contra a Mulher.

Segundo o Mapa da Violência de 2015, por dia, 7 mulheres são vítimas do crime que é cometido por familiares, parceiros ou ex-cônjuges. Elas têm seus corpos violados, suas identidades destruídas, são mutiladas e desfiguradas. Mas elas não podem ser esquecidas.

É por isso que grupos de mulheres estão organizando protestos e manifestações na próxima sexta-feira (4) em pelo menos 6 cidades brasileiras: São Paulo, Rio de Janeiro, Campo Grande, Natal, Goiânia e Curitiba. São ativistas, advogadas, mães, amigas, irmãs e filhas.

A jornalista Luana Schabib é uma das organizadoras do evento em São Paulo. Em entrevista ao HuffPost Brasil, faz questão de lembrar que não é um ato apenas em memória à Mayara Amaral, mas “um pontinho de resistência”.

“É uma movimentação para dar visibilidade às mortes diárias, dar visibilidade às violências cotidianas. É mais um pontinho num meio de luta pelos direitos das mulheres. É sobre direitos. Tudo isso é movido por dor e amor. Dor pela brutalidade, pelo quanto vale um corpo feminino, e amor por essas mulheres”, explica.

Maira Pinheiro faz parte da Rede Feminista de Juristas que também estará presente no ato.

De acordo com ela, há dificuldades em se classificar crimes contra mulheres como o feminicídio por que há divergências com relação ao âmbito de aplicação da lei.

“Há dúvidas em que se consistiria uma relação afetiva nos termos que define a lei Maria da Penha e no que configuraria um crime praticado por ‘razões do sexo feminino’ no caso do feminicídio. Mulheres trans e travestis, por exemplo, encontram dificuldade em ter seus casos de violência enquadrados em ambas as hipóteses. A culpabilização da vítima é um problema real, a ponto de se operar uma lógica perversa segundo a qual o que passa a estar sob julgamento é seu caráter e sua adequação ou inadequação a determinados papéis de gênero”, argumenta a advogada.

Para ela, o desafio está associado a combater a cultura patriarcal que rege a sociedade brasileira.

“Precisamos lembrar que o Judiciário que aplica a Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio é o mesmo que entende que não há estupro de vulnerável contra adolescentes de 13 anos, por elas estarem em situação de prostituição e por isso saberem o que estavam fazendo. O mesmo Judiciário que há não tantas décadas atrás justificava o assassinato de mulheres por legítima defesa da honra. O Judiciário faz parte da sociedade e a sociedade começou a enxergar a violência contra a mulher e a misoginia há pouco tempo”, explica.

A partir da constatação e denúncia por parte dos movimentos feministas de que a violência contra a mulher era invisibilizada e naturalizada, inclusive de forma institucional, foi que surgiu a demanda por alterações na legislação penal que vão muito além do aumento de penas.

Casos como o de Mayara reforçam a necessidade de uma rede estruturada de proteção às mulheres. Para a advogada, o que se tem, hoje no Brasil é uma rede “precária” que está muito longe de oferecer um acolhimento efetivo.

“Fora das capitais a situação é ainda mais crítica. Por isso falamos sobre como o sistema e os entraves que ele coloca ao acesso à justiça acabam por impor às vítimas uma revitimização. Desde os policiais militares que atendem às ocorrências in loco, pelos serviços de saúde, passando pela polícia civil e chegando ao Judiciário, as vítimas enfrentam dificuldades e têm seus relatos de violência minimizados ou relativizados”, analisa.

A advogada chama atenção para a necessidade de se oferecer formação aos profissionais das delegacias sobre gênero e diversidades entre as mulheres, bem como sobre violência contra a mulher e sobre as leis que as protegem.

É cruel porque o sistema penal é androcêntrico, ou seja, pensado a partir de premissas masculinas, de crimes praticados por homens contra homens. Por causa disso, questões como o fato de a violência de gênero se dar frequentemente no âmbito privado, ou seja, sem a presença de testemunhas, dificultam a compreensão dessa violência a partir das regras de funcionamento do Direito Penal.
Maira Pinheiro

O que difere um feminicídio de um homicídio?

De acordo com lei Nº 13.104, de 2015, o feminicídio é o homicídio qualificado por ter sido o crime praticado por “razões da condição do sexo feminino”. Considera-se que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve: violência doméstica e familiar; menosprezo ou discriminação à condição de mulher.

A pena do homicídio simples é de 6 a 20 anos, a do homicídio qualificado é de 12 a 30 anos. Homicídios qualificados são crimes hediondos, o que implica em regras mais rígidas de progressão de regime de cumprimento de pena.

“É importante notar que a redação final da lei alterou o texto original, que falava de ‘razões de gênero’, reflexo da disputa contra o que se chama equivocadamente de ‘ideologia de gênero’. Isso serviu também para dificultar a aplicação da lei a homicídios praticados contra mulheres trans e travestis”, explica Maira Pinheiro.

E qual a importância de classificar o feminicídio como feminicídio?

Essa questão possui, no mínimo, duas dimensões. A primeira é simbólica e relacionada à invisibilidade da violência contra a mulher; já a segunda é técnica e relacionada às possibilidades de defesa dos réus.

A alteração no Código Penal trazida pela Lei do Feminicídio tem dentre seus objetivos o de nomear os feminicídios como feminicídios. Parece óbvio mas não é.

“Enunciar que aquele crime aconteceu por motivos relacionados à condição de mulher da vítima faz toda a diferença. Casos de homicídios praticados em contexto de violência doméstica com frequência acabam tipificados como homicídio ‘privilegiado’, ou seja, quando incide a causa de diminuição de pena por ter o agente praticado o fato sob violenta emoção imediatamente após injusta agressão da vítima”, explica argumenta a advogada membro da rede Rede Feminista de Juristas.

Segundo a advogada, há um terceiro ponto: quando o assassinato de mulheres é nomeado como crime passional pela imprensa, a mesma visão machista e nociva às mulheres se expressa.

“Não se trata de paixão, nem de amor, nem de ciúmes, nem de violenta emoção, mas de objetificação. Ao não darmos as coisas os nomes que elas têm, estamos dando mais espaço para que a violência ocorra”, conclui.

Mayara Amaral era musicista. Pouco antes de ser morta, colocou uma música especial em seu repertório composta pela banda de mulheres Mulamba.

Luana Schabib fez questão de procurá-las e agora é a banda que organizará o ato em Curitiba.

“Isso é o mais louco. É realmente emocionante ver as mulheres se juntando, enxergando o quanto a violência está em todos os âmbitos, revisitando suas histórias, repensando relações. Lutando por direitos.”

Na mesma semana em que aconteceu a morte de Mayara, uma jovem que estava grávida foi jogada contra um ônibus em movimento, no Rio de Janeiro. Dias antes, Samara Oliveira Felipe, de 23 anos, se jogou do quarto andar do prédio onde morava para fugir das agressões do marido. No mesmo mês, Nathalie Rios Motta Salles, 32 anos, foi encontrada carbonizada e com os dentes arrancados em Vassouras. O suspeito é o seu ex-namorado.

Precisamos garantir que nossas mulheres vivam.

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