A história por trás da foto que se tornou símbolo do fim da Segunda Guerra
(O Globo, 15/09/2016 – acesse no site de origem)
A notícia chegou pelos sites, sem grande destaque, num sábado banal, 10 de setembro: “Morre a enfermeira do beijo que foi símbolo do fim da Segunda Guerra”. Chovia na Costa do Sauípe (BA), onde duas mil mulheres de todo o mundo reuniam-se, desde a quinta-feira, 8, no Fórum Awid, em torno de uma agenda global que contemple a igualdade de gênero, o fim da violência doméstica, a participação política feminina. Greta Zimmer Friedman, debilitada por uma série de doenças, falecera no estado americano da Virgínia, aos 92 anos. Partiu imortalizada por uma imagem em preto e branco que românticos e pacifistas de diferentes gerações confundiram com amor. Era assédio.
O beijo que integra a galeria das fotos mais famosas do século XX — virou, inclusive, mural do grafiteiro brasileiro Eduardo Kobra nos arredores do High Line Park, em Nova York — foi flagrado pelo fotógrafo alemão Alfred Eisenstaedt na Times Square, cartão-postal da mesma cidade, logo após o anúncio de rendição do Japão aos Estados Unidos, em 14 de agosto de 1945. Em reação ao ato que marcou o fim da guerra, americanos tomaram as ruas em festa. Na multidão estavam a assistente de dentista Greta (uma austríaca de origem judaica, que perdeu os pais no Holocausto e migrou para a América na adolescência) e o marinheiro beijador, George Mendonsa.
Ela ouvira no trabalho sobre o fim da guerra e saiu para conferir. Ele assistia a um show no Radio City Music Hall, que foi interrompido pela notícia da rendição japonesa. Igualmente correu para a rua. Greta não conhecia Mendonsa. Nunca tinham se visto antes do beijo. Só se reencontraram mais de quatro décadas depois, em 1980, por iniciativa da “Life Magazine”, que estampara na capa a foto icônica de Eisenstaedt.
Não foi um beijo de amor, mas um ato intempestivo e abusivo de um homem alcoolizado. Mendonsa estava acompanhado de Petry, a mulher com quem posteriormente se casaria. Era o primeiro encontro dos dois. Saiu com ela do espetáculo musical, bebeu num bar e foram caminhar. Num impulso, deixou a companhia e foi beijar outra mulher. “Estava muito feliz com o fim da guerra, tinha tomado uns drinques. Quando vi a enfermeira, agarrei e beijei. Foi aquele momento, sabe? Tinha acabado de voltar do Pacífico e a guerra havia terminado”, justificou décadas depois em entrevista à CBS.
Greta confirmou que foi surpreendida por Mendonsa: “Não vi que ele estava chegando e, antes que eu tivesse percebido, já tinha sido agarrada. Ele era muito forte. Mas eu não estava beijando ele. Ele que me beijou”. Eisenstaedt viu a cena, tirou a foto e seguiu seu caminho. Não anotou nome, idade, profissão da dupla; nem sequer verificou se eles eram, de fato, um casal. Batizou a foto de “Sailor kissing nurse on V-J Day” (“Marinheiro beijando enfermeira no Dia da Vitória”, em tradução livre) e a entregou à “Life”. O resto é História.
Embriagado pela atmosfera de paz, o mundo não atentou para os detalhes da foto. Enxergou afeto onde havia violência. A passada d’olhos na imagem remete a uma cena romântica de celebração de um casal (a enfermeira e o marinheiro) que a guerra ameaçava. Poesia pura. A observação cuidadosa escancara a violência. O braço esquerdo de Mendonsa imobiliza o pescoço de Greta para forçar o beijo na boca. É quase um mata-leão. A mão direita da jovem não enlaça, tenta empurrar o marinheiro. O braço esquerdo, punho se fechando, prepara a reação. É o avesso da entrega amorosa.
Setenta e um anos se passaram desde a foto histórica do alemão Eisenstaedt, e as mulheres, mundo afora, ainda sofrem com assédio sexual e violência de gênero. Há quem veja galanteio em cantadas e abordagens de rua. Multiplicam-se denúncias de agressão física a jovens que recusam beijos forçados em festas e casas noturnas — como Mendonsa, eles bebem e se acham no direito de tocar, beijar, atacar quem quiser. Só em 2014, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, foram registrados 47.646 casos de estupro no país. Estima-se que duas de cada três agressões nem sequer cheguem às delegacias. O Mapa da Violência 2015 contabilizou 4.451 feminicídios no país em 2013.
As Gretas Friedman de todo dia seguem reféns da cultura do estupro, que ainda vê o corpo feminino como propriedade masculina. Não existe amor no assédio. Eduquemos, pois, nosso olhar para enxergar além da superficialidade da imagem. E reagir. Greta morreu. A violência contra a mulher sobrevive. Quem dera fosse o contrário.