‘Caso Weinstein’ desencadeou o movimento #Metoo, que conseguiu unir milhares de mulheres assediadas e derrubou mitos do show bizz, tirando a carga da vítima
(El País, 24/12/2017 – acesse no site de origem)
Poderia ter caído no esquecimento. Não seria a primeira vez. Mulheres que denunciam publicamente o assédio sexual praticado por um homem poderoso, que mal sai arranhado. Mas não aconteceu isso. No início de outubro correram como um rastilho as manchetes informando que o gigante de Hollywood Harvey Weisntein havia sido demitido de sua empresa depois da publicação, pela revista The New Yorker e pelo jornal The New York Times, de uma pilha de acusações de casos de assédio sexual supostamente cometidos ao longo de décadas e silenciados graças ao talão de cheques. Sexo, poder, dinheiro. Mas o que começou como a história de sempre pode ter se tornado o pavio que incendeia a história. Em maiúsculas.
O estrondo provocado pelos testemunhos de artistas famosas contra Harvey Weinstein —Ashley Judd, Mira Sorvino, Angelina Jolie e Gwyneth Paltrow— desencadeou um enorme terremoto nos Estados Unidos, sentido em todo o Ocidente e que foi derrubando, em cascata, um rosário de homens poderosos, semideuses em seus respectivos domínios. Um sismo que animou centenas de milhares de mulheres anônimas que, sob o grito Me too (eu também) e sentindo que não estão sozinhas, romperam o silêncio e começaram a compartilhar seus próprios casos de abuso. O fenômeno acendeu um poderoso movimento contra esta chaga que não somente conseguiu que a sociedade começasse a considerar esta prática violentamente machista como algo intolerável como também pode agir como catalisador para lutar e expor a raiz do problema: a discriminação de metade da sociedade.
“Esse movimento conseguiu que a sociedade, pelo menos na esfera pública, jogue a carga da responsabilidade sobre o assediador, e não sobre as mulheres. Deu a elas credibilidade e estabeleceu que desde a violência de baixa intensidade, com comentários inoportunos, até o assédio sexual mais inoportuno é responsabilidade de quem agride”, destaca a professora Laura Nuño, titular da cadeira de gênero da Universidade Rey Juan Carlos, na Espanha. Uma mudança de discurso que dificilmente recuará, afirma. Porque algo que é classificado como injusto não pode mais ser visto publicamente como tolerável.
Por que agora, por que essas denúncias e não as de dois, cinco ou dez anos atrás, como as feitas contra Bill Cosby ou o escândalo do consagrado apresentador da Fox Bill O’Reilly? É inevitável fazer a pergunta. A resposta deve ser buscada na expansão dos movimentos feministas, no caldo de cultura que vinha sendo cozido desde havia pelo menos um ano: a força e a resistência do movimento “Nem uma a menos” na América Latina; a inédita Marcha das Mulheres de janeiro, em Washington, contra a agenda ultraconservadora do presidente Donald Trump, governante também acusado de assédio; as greves de mulheres em março no mundo todo; as múltiplas manifestações contra a violência machista. O movimento Eu Também é a notícia internacional do ano para este jornal, e 2017 foi, dizem o ano das mulheres.
Não por acaso feminismo foi considerada a palavra do ano pelo dicionário norte-americano Merriam-Webster, que revelou que em 2017 as buscas pelo termo aumentaram mais de 70% em relação ao ano anterior. Nunca antes tantas mulheres —e também homens— de diferentes esferas haviam se definido publicamente como feministas, palavra maldita durante anos (e que ainda incomoda muitas).
Há um legítimo debate sobre se tudo isso tem algo de revolução ou de modismo. Se é uma mudança sociológica ou uma erupção passageira. Será preciso esperar alguns anos para saber. Embora parte dessa metamorfose tão aguardada já tenha chegado.
Mudança palpável
O fenômeno Eu Também já foi notado nas urnas. No Estado norte-americano do Alabama, um bastião conservador do país, o extremista candidato republicano ao Senado Roy Moore afundou nas eleições de alguns dias atrás, sob o peso de seu radicalismo e também pelas acusações de abusos contra adolescentes três décadas antes, quando tinha seus trinta anos. Há mais de um ano outras acusações de agressão e abuso não impediram a vitória de Trump na eleição presidencial. Nem mesmo uma gravação de 2005 em que ele afirmava que quando se é um “astro” as mulheres deixam fazer “qualquer coisa”, como agarrá-las “pela boceta” abalou o candidato.
Emily’s List, uma organização dos EUA que há mais de três décadas promove a participação da mulher na política, não acredita nos números de 2017. “Desde a eleição presidencial [8 de novembro de 2016] umas 25.000 mulheres vieram a nós interessadas em concorrer a algum cargo eletivo. Para pôr esse número em contexto: em 2016 inteiro só vieram 920”, explica a presidenta da entidade, Stephanie Schriock. “Estamos vendo um momento sem precedentes de ativismo político entre mulheres, como não havíamos visto em nossos 32 anos de existência”, afirma. Algumas já chegaram a seus postos: das 65 candidatas que a instituição apoiou em 2017, venceram 43. E elas partem de um patamar muito baixo: no Congresso, por exemplo, as mulheres não chegam a 20%.
O vendaval chegou também a outros países. Na Suécia, o ouvidor da Igualdade pôs sob escrutínio as práticas de quarentena nas grandes empresas, e a lei será endurecida para especificar que toda relação que não tenha o consentimento expresso é abuso sexual. O “não é não” não é suficiente, afirmou o primeiro-ministro Stefan Löfven, “somente o sim quer dizer sim”. Na França, onde está em preparação uma lei contra o assédio nas ruas, o presidente Emmanuel Macron estabeleceu a igualdade entre mulheres e homens como a “grande causa” de seu mandato, numa sociedade, disse, “doente de sexismo”.
Todas as revoluções sociais avançam aos trancos: dando dois passos de uma vez e recuando um. Até que se cristalizem. Mas o que o movimento Me too deixou claro é que serviu como catarse. Pesos-pesados do mundo do cinema e da televisão caíram em desgraça, políticos notáveis abandonaram seus cargos, denunciados por seus próprios partidos. E o que não é menos importante: alguns homens se lançaram a lamentar e admitir abertamente que não tenham levado suficientemente a sério o abuso contra as mulheres.
Em novembro, o ator Alec Baldwin entoou um duro mea-culpa. “Tratei as mulheres de maneira muito sexista”, disse o intérprete de 59 anos. E continuou, sem meias-tintas: “Intimidei as mulheres. Passei por cima delas. Subestimei-as. Não como norma, mas de vez em quando fiz o que muitos homens fazem, que é… quando não trata as mulheres da mesma forma que trata os homens. Sou de uma geração que realmente não trata, e gostaria de mudar isso”.
Na hora de avaliar se a sociedade está realmente vivendo uma mudança de mentalidade, um reconhecimento com tal franqueza se torna uma pista muito mais confiável que as demissões fulminantes feitas por empresas. Porque essas, em muitos casos, estavam plenamente conscientes do assédio e dos maus-tratos sistemáticos de seus astros contra suas subordinadas e agiram somente quando temeram o dano a sua reputação.
O tratamento abusivo de Harvey Weinstein era sabido por boa parte de Hollywood, como demonstram os vários testemunhos. Outro ilustre repudiado é o veterano jornalista televisivo Charlie Rose, de 75 anos, que as redes CBS e PBS despediram há um mês, depois que oito mulheres o acusaram de assédio sexual. Uma das que o denunciaram tinha 21 anos quando aconteceram os fatos (ele se despia na frente dela e lhe falava de fantasias sexuais) e na época informou sua produtora, que não deu importância ao assunto: “É Charlie agindo como Charlie”, disse-lhe. Agora essa produtora afirma que se arrepende.
É um exemplo de que o assédio persistente só é possível sob uma cultura que o ampara e o relativiza. Alyssa Milano —a atriz que disparou o movimento Me toonas redes sociais— aludiu a algo semelhante em sua resposta a Matt Damon. O ator pediu há alguns dias que se diferencie “entre passar a mão na bunda de alguém e um estupro, ou abusar de uma criança”. Tudo, disse ele, deveria ser erradicado, mas, ao mesmo tempo, sem “misturar”. E completou: “Vivemos nesta cultura do escândalo, que temos que corrigir para poder dizer: ‘Espere um momento. Nenhum de nós é perfeito’”. “Não estamos indignadas porque alguém tocou em nossa bunda numa foto. Estamos escandalizadas porque nos fizeram sentir que isso fosse era normal. Há diferentes estágios num câncer. Alguns são mais tratáveis que outros. Continua a ser um câncer”, respondeu Milano.
Moda ou não, uma nova geração de mulheres inconformistas esporeou o movimento compartilhado com as adultas, cada vez mais conscientes da desigualdade, mas também do poder do ativismo. Mas os processos de transformação do feminismo, como indica a especialista em temas de gênero Mónica Roa, são extremamente lentos porque é preciso mudar grandes estruturas e dinâmicas muito profundas. “Além disso, cada vitória se torna mais difícil, porque gera a pergunta ‘mas o que mais querem?’”, explica Roa.
O campo de batalha é infinito. A cada dez minutos um homem assassina uma mulher que foi ou é seu par, segundo a ONU. Uma em cada 14 mulheres sofreu algum tipo de abuso sexual, como revela a Organização Mundial da Saúde (OMS). Na Europa elas ganham, em média, 16,3% menos por hora trabalhada que os homens; nos Estados Unidos, porcentagem semelhante. No Brasil, o salário das mulheres é em média 84% do dos homens. Mulheres são somente 20% dos altos executivos nos países do G7. Nas principais empresas da Bolsa europeia, 74,7% dos presidentes, membros do conselho e representantes dos trabalhadores são homens. Na América Latina e no Caribe, a taxa de participação laboral feminina está há anos parada em 53%. E vai assim, infinitamente.
“O movimento Eu Também desencadeou uma verdadeira tempestade, que ainda não parou e deve ser aproveitada”, ressalta Virginija Langbakk, diretora do Instituto Europeu de Igualdade de Gênero (EIGE). Ela acha que o fenômeno provocará maior consciência das empresas, dos Governos e das forças de segurança sobre o assédio e o abuso sexual. Foi a história do ano. Falta que seja o ano em que a história mudará.