Denúncias de assédio sexual feitas por mulheres tomaram o debate nos últimos meses. Desde o caso Harvey Weinstein, em Hollywood, e ainda os episódios de abuso no transporte público, no Brasil, parece não haver outro assunto que toque tanto as mulheres e alcance tantas.
(UOL, 02/02/2018 – acesse no site de origem)
Porém, a primeira semana de 2018 trouxe respostas inesperadas para o grito de basta das vítimas: Catherine Deneuve e mais 99 francesas assinaram uma espécie de manifesto a favor da “liberdade de incomodar” como algo “indispensável para a liberdade sexual”, enquanto por aqui, um texto de Danuza Leão, publicado pelo jornal “O Globo”, dizia que “toda mulher deveria ser assediada, pelo menos, três vezes por semana para ser feliz”.
Os posicionamentos incomodaram feministas, ainda mais por terem partido de mulheres, e levantaram questionamentos sobre a naturalidade permissiva do assédio. “É apenas instinto masculino”, “homem é assim mesmo, não se controla”, “Já dizia minha avó: prendam suas cabras porque meu bode está solto”, “Mulher gosta mesmo é de ser cantada” são apenas algumas das máximas difundidas nas redes.
Mas, afinal, de onde vêm essas lendas sociais que insistem em justificar o assédio? E mais: por que as reproduzimos para perdoar casos de abusos?
Heloísa Buarque de Almeida, professora de antropologia da USP (Universidade de São Paulo) e parte da Rede Não Cala USP (de professoras pelo fim da violência sexual e de gênero na universidade), responde essas perguntas e ainda fala sobre gênero e violência sexual no Brasil.
UOL: Sobre as lendas sociais que cercam os gêneros feminino e masculino, por exemplo, a de que homens não se controlam: de onde elas vêm?
Heloisa: Assédio não tem a ver apenas com gênero, mas também com concepções de sexualidade. Durante muito tempo, foi naturalizado, no Brasil, o fato de os homens se comportarem como predadores sexuais, e isso seria positivo, um sinal de masculinidade, de virilidade e de força. Essas lendas vêm dessa naturalização.
UOL: Mas a naturalização traz consequências, certo?
Heloisa: A naturalização em si é um problema. Ela diz que mulher e homem são desiguais e não há nada que possamos fazer. Ela coloca as mulheres em um lugar de inferioridade e de diferenças irredutíveis. Mas, se fôssemos só natureza, as mulheres seriam todas iguais entre si, assim como os homens. E há não só diferenças históricas e culturais, mas também diferenças de contexto social: de classe, raça, religião, geração/idade, região de moradia (viver no meio urbano ou rural). Mulheres pobres e negras no Brasil nunca puderam se dar ao luxo de ser o “sexo frágil”. Muitas delas são fortes, inclusive fisicamente, trabalham no pesado, como as domésticas do país.
UOL: Como podemos explicar o conceito de gênero?
Heloisa: Gênero trata das diferenças sociais, culturais e históricas entre homens e mulheres. Fala tanto de desigualdades que são naturalizadas em nossa cultura quanto de comportamentos, profissões e espaços. Em certas sociedades, o tear é feminino, em outras, masculino. Há profissões e atitudes que mudam de status. No Brasil, a enfermagem e a educação foram profissões que se desvalorizaram ao se tornarem cada vez mais femininas, seja por terem mais mulheres ou por serem associadas a comportamentos e atitudes considerados femininos.
UOL: Mas isso tudo é aprendizado cultural?
Heloisa: Sim. No caso da enfermagem, por exemplo, ninguém nasce sabendo cuidar dos outros, não é decorrência do corpo, mas de processos sociais. Damos bonecas e ensinamos as meninas a cuidarem, dar banho, ao passo, que os meninos são ensinados a lutar e a jogar bola. A teoria de gênero mostra que as coisas têm uma história e não decorrem da natureza do homem ou da mulher. Não é o corpo nem a biologia que determina.
UOL: Sobre a carta das francesas, existe um abismo cultural entre nós e elas? Podemos dizer que ser mulher no Brasil é mais árduo do que ser mulher na França?
Heloisa: Primeiramente, quero dizer que o texto das francesas não parece perceber a diferença entre uma paquera (algo recíproco, de interesse mútuo) e um assédio (que inclui algum tipo de pressão e ameaça), e supõe que denunciar o assédio seja algo como ser contra o sexo, ser moralista. Agora, respondendo a pergunta: a França não é tão diferente do Brasil. É um país que também tem violência contra a mulher, embora, o Brasil seja, de fato, uma das nações com dados mais alarmantes. Não dá para falar resumidamente “mulher brasileira” x mulher francesa”, porque temos mulheres muito diferentes em cada lugar. E há nesse tema do assédio, certamente, um corte geracional. Muita mulher no Brasil, como Danusa Leão, pode concordar com Deneuve. Mas as duas talvez não entendam bem o que as mais jovens estão dizendo. Elas falam de um lugar de mulheres de classe alta, que não precisam enfrentar a ameaça de serem encoxadas no metrô ou no ônibus, como acontece cotidianamente com as que andam de transporte coletivo nas grandes cidades.
UOL: O que falta para as denúncias de assédio acontecerem no Brasil como estão acontecendo fortemente em Hollywood?
Heloisa: No Brasil, denunciar violência sexual é muito difícil porque, na maioria dos casos, os acusados sequer são processados. É muito comum que se responsabilize a vítima e que esta se sinta culpada e, por isso, não denuncie.
Natacha Cortêz