O artigo 5º, da Constituição Federal de 1988, prevê que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (…)”, no entanto, historicamente as mulheres eram subjugadas e oprimidas perante a sociedade. A mulher era vista e tratada como inferior perante o sexo masculino e não possuía liberdade e autonomia para seguir suas escolhas. Isso em razão de que, na época a mulher era educada e instruída para ser dona do lar, isto é, cuidar dos filhos, do marido e da casa. Consequentemente, o exercer um trabalho fora desse padrão era dever do homem, que tinha a obrigação de sustentar a família.
(Justificando, 17/07/2017 – acesse no site de origem)
Com o passar do tempo, as mulheres tornaram-se mais independentes e passaram a lutar pelos seus direitos. Em 1857, no dia 8 de março, cerca de 130 mulheres morreram carbonizadas trancadas dentro de uma fábrica. Elas lutavam contra a discriminação salarial e a inferioridade salarial comparado aos homens. Em 1975, somente 118 anos após a tragédia, foi reconhecida a luta dessas mulheres e a ONU declarou a data como um marco para homenagear a luta das mulheres pelos seus direitos. A manifestação dessas mulheres, bem como o direito ao voto feminino – reconhecido no ano de 1932 – são eventos propulsores a luta das mulheres e que consequentemente impulsionam o empoderamento feminino.
Isto posto, a violência contra a mulher era tida como comum e ignorada pela sociedade, que consentia com as agressões por acreditar que a mulher era culpada pela violência sofrida. Já atualmente, a luta pelo combate a violência contra a mulher é constante, e existem inclusive dispositivos legais para proteger e amparar a mulher vítima de violência.
Um desses dispositivos, a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, é responsável por coibir os atos de violência doméstica e familiar contra a mulher. No entanto, apesar da Lei Maria da Penha ser considerada um progresso na luta dos direitos da mulher, ainda é significativo os números e índices de violência contra a mulher. Isso ficou evidente em uma pesquisa realizada em vinte e cinco estados do Brasil que revela que a cada dois minutos cinco mulheres são espancadas no país.
Além da promulgação da Lei Maria da Penha, outro avanço expressivo nesse sentido foi à inclusão do inciso VI no Art. 121 do Código Penal. O inciso foi incluído pela Lei 13.104/2015 e prevê o feminicídio como modalidade de homicídio qualificado. Para incidência da qualificadora é necessário que o agente pratique homicídio motivado pela condição do sexo feminino da vítima. Não obstante, cabe questionar a possibilidade da aplicabilidade ou não dessa qualificadora para as mulheres transexuais vítimas de violência.
Inicialmente, cabe distinguir os conceitos de sexo e gênero, que não podem ser entendidos como sinônimos. Assim, podemos compreender que “o sexo biológico de um ser humano é definido pela combinação dos seus cromossomos com a sua genitália”. Por outro lado, de acordo com teorias feministas, compreende-se por gênero, “categorias que são historicamente, socialmente e culturalmente construídos, e são assumidos individualmente através de papeis, gostos, costumes, comportamentos e representações”. Logo, percebe-se que o conceito de mulher é englobante, visto que pode ser relacionado estritamente no campo biológico, ou seja, de acordo com o sexo, ou pode ainda ser interpretado de acordo com a construção social da identidade de gênero.
Avançando na discussão, os autores Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald conceituam o transexual como “aquele que sofre uma dicotomia físico-psíquica, possuindo um sexo físico, distinto de sua conformação sexual psicológica”.[1]
Assim, é notório que o transexual é a construção de uma nova identidade através da construção social da identidade de gênero, quebrando conceitos estabelecidos para definir o conceito estrito de mulher.
Acerca do tema encontramos dois posicionamentos doutrinários. A primeira posição acredita que o transexual não pode ser considerado mulher para fins da aplicação da qualificadora do feminicídio, mesmo que realizada a alteração em seu registro civil ou a mudança de seu órgão genital. Por outro lado, o segundo posicionamento entende que a mulher transexual encontra-se protegida pela qualificadora do feminicídio, seja ela biologicamente mulher ou juridicamente reconhecida como mulher.
Nesse viés, o autor Rogério Sanches Cunha, explica que “no caso de transexual que formalmente obtém o direito de ser identificado civilmente como mulher, não há como negar a incidência da lei penal porque, para todos os demais efeitos, esta pessoa será considerada mulher”.[2] Cabe ainda ressaltar o posicionamento do autor Celso Delmato que acredita que “o transexual que mantém o psiquismo voltado para o gênero feminino e que tenha realizado tanto a cirurgia de mudança de órgãos genitais, quanto à alteração em seu registro civil, poderá ser abrangido pela proteção especial do feminicídio”.[3]
Diante do exposto, compreende-se que o conceito de mulher é extremamente complexo e a compreensão da identidade de gênero é baseada na construção social e individual de cada um. Assim, as mulheres transexuais apesar da sua condição biológica, socialmente identificam-se como mulheres. Sendo então, o objetivo da qualificadora combater a criminalização em razão do gênero feminino, não há motivos para restringir sua aplicação às mulheres transexuais.
Por fim, ainda cabe nós refletirmos: até que ponto a lei pode sobrepor o reconhecimento das transexuais como mulheres?
Jackeline Prestes Maier é acadêmica do 5º semestre do curso de Direito da Faculdade de Direito de Santa Maria – FADISMA. Membro do grupo de extensão DIOTMA: Informação e celeridade aos direitos e deveres das mulheres vítimas de violência doméstica na comunidade de Santa Maria/RS.