A Justiça no Brasil não é divina, é feminina. Por Carla Jimenez

31 de maio, 2016

(El País Brasil, 31/05/2016) A incompetência do delegado que conduzia o caso da menor estuprada no Rio revela por que os crimes desta natureza ficam impunes. A pressão das mulheres vira o jogo.

Sai um delegado que desacredita uma vítima de 16 anos, violentada por no mínimo seis homens numa favela no Rio, mas que podem chegar a mais de 30. Entra uma delegada que se debruçou sobre o caso neste domingo, esticando o estudo de evidências recolhidas até então: o estupro coletivo está comprovado, afirmou Cristiana Bento. Pelo vídeo e pelo depoimento da adolescente. O seu antecessor no caso, Alessandro Thiers, saiu porque lhe faltou trato com a vítima, segundo o chefe da Polícia Civil do Rio de Janeiro, Fernando Veloso. Durante coletiva de imprensa sobre o caso, Veloso foi questionado se o afastamento havia ocorrido por erros que o delegado pudesse ter cometido. “Nós não fazemos pré-julgamento”, respondeu o chefe da polícia.

Mas Thiers, qualificado como muito “competente” por Veloso, não deu à jovem o mesmo benefício que está sendo concedido a ele. Thiers ajudou a pré-julgar a adolescente estuprada e colaborou para um espetáculo grotesco que expôs a adolescente ao ridículo, e deixou os estupradores fugirem. Diante da gravidade do caso mostrou-se hesitante e solidário à primeira versão de criminosos e desacreditou a vítima ao ponderar “se houve consentimento dela, se ela estava dopada e se realmente os fatos aconteceram”. Em uma troca de mensagens por Whatsapp, divulgada pelo jornal Extra, e confirmada pela Rede Globo, Thiers disse em privado que não havia estupro, e que a adolescente teria inventado a história dos 33.

Mas a jovem confirmou, em entrevista a vários veículos de televisão, que foi tratada por ele como criminosa durante o depoimento à polícia na frente de outros homens. Thiers exibiu as fotos e vídeos e perguntou a uma moça de 16 anos acuada por traficantes se ela gostava de fazer aquilo. “Ele perguntou se eu tinha o costume de fazer isso, se eu gostava.” Uma adolescente contra três dezenas de bandidos, um delegado completamente despreparado e contra um sistema viciado em culpar vítimas de estupro. O delegado afastado pelo menos foi útil, porque foi didático: sua incompetência revelou por que os estupros no Brasil não param de se multiplicar.

Sua lógica se parece com a que foi adotada em outro caso, amplamente noticiado no dia 17 de maio deste ano. O juiz Luiz de Abreu Costa liberou o delegado Moacir Rodrigues de Mendonça da cidade de Itu que estava detido por ter estuprado a neta quando ela tinha 16 anos num quarto de hotel durante uma viagem de lazer em 2014. A neta não teve reação imediata. E os pais só descobriram o caso 20 dias depois porque encontraram a adolescente com uma arma na cabeça para dar fim à própria vida. Acabou contando tudo, e Mendonça foi denunciado e preso.

Até ser liberado semanas atrás. O delegado estuprador ganhou sua liberdade pelas mãos de Costa com a seguinte justificativa em sua sentença: “A não anuência à vontade do agente, para a configuração do crime de estupro, deve ser séria, efetiva, sincera e indicativa de que o sujeito passivo se opôs, inequivocadamente, ao ato sexual, não bastando a simples relutância, as negativas tímidas ou a resistência inerte. (…) Não há prova segura e indene de que o acusado empregou força física suficientemente capaz de impedir a vítima de reagir. A violência material não foi asseverada, nem esclarecida. A violência moral, igualmente, não é clarividente, penso”, escreveu o juiz.

Pensou? Não cabe a um juiz de mente depravada “pensar”. É inconcebível representantes da Justiça se pautem por valores distorcidos, e continuem violentando as mulheres quando elas se defendem. Dizer que a relutância não foi suficiente segue uma lógica de ratazanas, mentes depravadas que protegem estupradores.

Apesar de tudo, há um dado alentador no meio desta barbárie. À medida que a incompetência na condução das investigações no Rio foi exposta, cresceu a coragem das mulheres de se manifestar. Nas redes sociais, e até na sede do Supremo, onde calcinhas manchadas de vermelho foram exibidas e flores depositadas na estátua que representa a Justiça. As mulheres deste país já não suportam mais. Neste exato momento em que algum tarado está assistindo a cenas de estupros clandestinas no Whatsapp, há mulheres criando grupos de apoio, buscando inspiração em exemplos de ações conjuntas contra o estupro em outros países, e organizando manifestações para repudiar esta cultura selvagem.

Nada vai mudar do dia para a noite. Mas foi essa pressão que fez com que Thiers fosse afastado do caso no Rio e Cristiana Bento assumisse as investigações. Uma gota num oceano em que se começa a perceber que a Justiça não tem nada de divina no Brasil. Ela só vai acontecer daqui para frente pela permanente vigilância feminina.

Acesse no site de origem: A Justiça no Brasil não é divina, é feminina(El País Brasil, 31/05/2016)

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