(Folha de S.Paulo, 07/08/2016) Há exatos dez anos, uma lei chegou para romper um modelo enraizado há séculos no Brasil. Padrões excludentes empurravam para a minoria a hoje majoritária parcela da população brasileira. Tratadas pelo mercado de trabalho, pelas relações sociais e econômicas e até pelas leis como inferiores, as mulheres viram nesta específica legislação o maior exemplo de combate.
A lei surgiu, como nossa história registra num triste capítulo, da pior violência que pode acometer alguém. Na década de 1980, uma de nós carregou na pele e na alma tamanha brutalidade. Foram tiros e choques desferidos pelo próprio marido, com a intenção de matá-la.
Essas tentativas não foram suficiente para calar esta guerreira, Maria da Penha, e dela veio o exemplo que gerou a legislação em vigor: a Lei Maria da Penha.
Hoje a naturalização da violência decorrente de nosso atraso não encontra mais respaldo. A lei e todo o debate que a precedeu promoveram uma ruptura, uma mensagem clara de que a violência contra a mulher não é mais aceitável.
O texto da lei é uma declaração, um confronto à hierarquia até então estabelecida. Um basta à lógica que dividia a sociedade entre superiores e inferiores, os que possuem poder e os que estão a ele submetidos, os que podem usufruir de uma vida livre de violência e os que estão sujeitos a ela diariamente.
Em dez anos, a taxa de homicídio de mulheres permaneceu no mesmo patamar, por volta de 1,2 para cada 100 mil, comprovando que a violência ainda persistir, mas ao menos não cresceu. Mesmo que em número insuficiente, a instalação de varas e juizados especializados em agressões contra a mulher conferiu maior segurança para a denúncia.
Hoje mais mulheres buscam as delegacias porque passaram a confiar na possibilidade de proteção. A sensação de impunidade foi aos poucos sendo afastada.
De acordo com estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), em 2015 houve redução de 10% no número de mulheres assassinadas em decorrência da violência doméstica. Vidas foram salvas.
A Lei Maria da Penha avançou em muitos sentidos, mas a principal contribuição foi, sem dúvida, estabelecer um novo paradigma, iluminar uma questão até então relegada ao espaço privado. Uma realidade cruel com as mulheres passou a ser tratada como política pública.
Muito temos que caminhar para a integral efetividade da lei, mas o passo mais difícil foi dado. E foi dado porque encontrou na democracia o espaço necessário para florescer. Quando a democracia está em risco, a intolerância e o preconceito crescem, e os avanços são ameaçados.
Hoje, ao celebrarmos uma década dessa legislação, vemos com tristeza, mas com redobrada disposição para a luta, discursos que parecem ter como único objetivo retroceder ao antigo paradigma. Muitas vezes são proferidos pelos que dizem nos representar no poder.
Apesar de tudo, a lei se consolida a cada ano. O Brasil não tolera mais a violência contra a mulher. É uma conquista sem volta, nossa e sua, de todas nós.
JANDIRA FEGHALI, 59, é deputada federal (PCdoB/RJ). Foi deputada estadual do Rio e relatora da Lei Maria da Penha
MARIA DA PENHA, 71, é biofarmacêutica e líder de movimentos de defesa dos direitos das mulheres. Vítima de agressões domésticas do ex-marido que a deixaram paraplégica, inspirou a criação da lei federal que leva seu nome
Acesse em pdf: Lei Maria da Penha, um novo paradigma, por Jandira Feghali e Maria da Penha (Folha de S.Paulo, 07/08/2016)