Mitos que Matam, por Valéria Scarance

02 de dezembro, 2016

Era uma vez uma garota de nome Iva

(Carta Forense, 02/12/2016 – acesse no site de origem)

Iva teve seu primeiro namorado aos 16 anos e logo engravidou, quando a relação imediatamente se tornou violenta. Tentou pedir ajuda para a sua mãe, mas não recebeu apoio. Casou-se aos 18 anos e, no dia casamento, o esposo saiu sozinho com os amigos. Questionado, respondeu-lhe com um violento soco no rosto na frente de todos. Era vigiada, agredida e obrigada a fazer sexo. Após algum tempo, decidiu engravidar para salvar o casamento. Na televisão, viu uma reportagem em que outras mulheres sofriam violência e pediu ajuda em uma associação, mas o parceiro a convenceu a voltar.  Engravidou novamente. As agressões e os xingamentos de “puta” ocorriam na frente das crianças. Depois, esposo dava presente para os filhos, dizendo que a vítima era “maluca” e provocava tudo. Conseguiu fugir de casa, foi abrigada e não obteve a guarda dos filhos. Está empregada e seu sonho é montar um “infantário” para que mães sozinhas como ela possam trabalhar e cuidar de suas crianças.

Esta é a história de Iva, que vive em Portugal, mas poderia ser a história de qualquer mulher brasileira.

Há inúmeras coincidências com os fatos que acontecem por aqui: a conduta do agressor, a reconciliação, os xingamentos de “puta” ou “vagabunda” (ofensas que aparecem em quase todos os processos), a violência na presença dos filhos, o sexo como poder e não afeto, a liberdade do homem simultânea ao controle da parceira, a alegação do agressor de que a vítima é “louca”, “ciumenta”, “doente” ou “maluca”.

Sim, a violência é cultural e universal. Mas ao mesmo tempo mistificada e incompreendida.

Não é suficiente dizer que a cada três mulheres uma sofre violência se, quando acontece, a incompreensão cega e ensurdece  pessoas próximas da vítima, até mesmo seus filhos e filhas, alguns setores da imprensa e mesmo parte das autoridades públicas.

Esses “pré”conceitos absolutamente naturalizados,  associados à ausência de conhecimento específico, fazem  com que vítimas sejam transformadas em  “ciumentas,  “depressivas”, “interesseiras”, “loucas” e os autores de violência em homens “perseguidos”.

“Mitos” que não correspondem à verdade geram revitimização pública, são julgamentos em uma praça pública mais cruel e perpétua do aquela existente à época da Inquisição – a mídia com a eternidade infamante da internet.

Dentre os principais “mitos” , destacam-se os seguintes:

MITO – mulheres fortes e independentes livram-se facilmente da violência

VERDADE – a violência pode fragilizar qualquer mulher, seja qual for seu status ou grau de instrução

Há uma crença irreal de que a mulher “forte”, independente, com estudo e profissão definida não sofre ou sofrerá violência, ou se livrará facilmente da situação, como se esses fatores fossem “antídotos” contra a violência.

Em regra, as relações violentas iniciam-se como qualquer relação, com um namoro, sedução, seguindo-se um discreto isolamento, o rebaixamento da parceira, ameaças, pequenos tapas, empurrões e só depois a agressão física.

Homens violentos não exibem um “alerta de perigo”. Podem ser médicos, engenheiros, religiosos, professores universitários, gentis e educados. Não demonstram sua conduta socialmente e a todo momento invertem a responsabilidade pelo ato violento. Se  desferem um tapa na parceira, por exemplo, dizem que foram “obrigados a fazer isso”, porque ela estava descontrolada ou ela é responsável por terem perdido o controle.

Estar com um homem violento é, simplesmente, uma questão de cruzar o seu caminho. Livrar-se de uma relação violenta um processo longo de conscientização, em que a mulher precisa de ajuda.

MITO – A vítima não abandona o homem “porque é apaixonada” ou “por sua escolha”

VERDADE – A vítima precisa de ajuda para sair de uma relação violenta

A repetição da violência  envolve momentos de tensão, agressão e reconciliação e gera a Síndrome da Mulher Maltratada, com consequências graves como: distorções ou dissociação da realidade, alteração da autoimagem, baixa autoestima, sentimento de culpa, minimização da violência e stress pós-traumático (LABRADOR, Francisco Javier e outros. Mujeres víctimas de la violencia domestica. Madri:  Pirámide, p.63).

Essa violência fragiliza a tal ponto que as mulheres não conseguem reagir ou sustentar sua decisão de reagir. Por isso, desistem do processo e são apontadas como “fracas” e “inseguras”, chegando a gerar irritação em autoridades.

Com a inversão da culpa, muitas vítimas “pedem desculpas”, visitam réus na Cadeia ou justificam a violência para o juiz. Em um processo, por exemplo, a vítima gravemente ferida disse que o marido “perdeu a cabeça por culpa dela”, porque o filho do casal chorou e o agressor estava “cansado”. O agressor também justificou o “descontrole” pelo mesmo motivo.

Essa postura não significa ausência de perigo. Ao contrário, significa que a vítima não tem ciência da gravidade da situação ou de que está iludida com a possibilidade de modificação do comportamento do réu.

MITO – A separação resolve o problema do casal e os conflitos “são normais”

VERDADE – O momento mais perigoso é o da separação

A raiz violência contra a mulher está no sentimento de posse e de propriedade do homem sobre seu corpo e sua vida. No instante em que a mulher manifesta o desejo de romper o relacionamento ou adota uma atitude de rompimento, pode haver risco de morte.

Esse é o momento mais crítico, embora, por equívoco, muitas autoridades neguem-se a agir e proteger a mulher por entenderem que a questão é unicamente do Direito Civil.

No estudo Violência Doméstica Fatal: O Problema do Feminicídio Ìntimo no Brasil, constatou-se que:

“Na maior parte do material analisado, alegações relativas a ciúmes ou sentimento de posse em relação à vítima e inconformismo com o término do relacionamento apareceram nos processos (de feminicídio)… Não bastante, constata-se, nos discursos dos autores dos crimes, a expectativa de fidelidade dessa mulher, mesmo após a separação, já que o envolvimento posterior da mulher com outra pessoa foi apontado como motivo do crime”(MACHADO, Marta Rodriguez de Assis Coord.  Brasilia: Ministério da Justiça, 2015, p.  45-46, grifo nosso).

MITO – se a própria vítima pediu revogação da medida protetiva,  é porque não há perigo

VERDADE – a vítima pode correr risco de morte

Vítimas não têm condições de avaliar o próprio perigo. Essa avaliação deve ser feita por autoridades, ou por profissionais com capacitação, segundo critérios validados cientificamente.

Situação que exige especial cuidado é a declaração assinada pela vítima pedindo a revogação da  medida protetiva, principalmente se foi solicitada pelo réu ou seu advogado.

Conceder ou negar proteção deve ser uma decisão criteriosa e cuidadosa com base no perigo resultante da análise de requisitos específicos. Os fatores de risco mais graves apontados pelos instrumentos internacionais são:

.  separação recente, em que não há aceitação do parceiro: período mais crítico – 02 meses;  período de “alerta”- até 01 ano.

. perseguição incessante (stalking)

. aumento da intensidade da violência nos últimos meses;

. apertar o pescoço (asfixia, estrangulamento da vítima);

. ameaça de suicídio ou de matar os filhos do casal;

. modificação súbita do comportamento do agressor e ciúmes  excessivo;

. acesso a arma de fogo ou profissão de policial ou segurança;

. histórico familiar de violência (violência na família de origem do agressor);

. histórico de violência com outras mulheres;

.  consumo excessivo de álcool e drogas (embora não causem a violência, potencializam o risco de morte);

MITO: O agressor é louco, sociopata, alcoólatra ou viciado

VERDADE: o agressor é um homem comum, que incorporou o padrão de violência

Esse é um dos mitos que mais afeta o julgamento das pessoas.

Em regra, pensa-se o seguinte: se meu amigo, meu chefe, meu professor fossem agressivos eu perceberia. Então, por exclusão, a parceria é que deve ter “inventado” a  história da violência por algum motivo.

O autor da violência em regra não é louco, alcoólatra, viciado em drogas, embora os dois últimos fatores contribuam para aumentar o risco. É alguém comum, o que conflita com o padrão “naturalizado” de criminoso.

Como o autor de violência culpa a vítima pelo seu descontrole, tende a ter um discurso muito convincente ou de um homem apaixonado.

Flávio Urra descreve essa fala dos autores de violência nos grupos reflexivos:

Em várias ocasiões, os homens se colocam no grupo como se eles fossem as vítimas … cumpriram com tudo o que era esperado que fizessem: foram fortes, corajosos, honrados, valentes e, no convívio com a esposa, foram a cabeça do casal, mas por uma razão que não entendiam estavam sendo punidos por isso”. Um deles, Antonio, “exerceu violência contra a parceira porque ela era desobediente e não ensinava os filhos com vigor. Ele havia chegado do trabalho, estava cansado, tentando dormir e seu filho começou a gritar pela casa, ele gritou, ela interveio e iniciaram uma briga, praticando a agressão” (URRA, Flávio. Masculinidades: construção social da masculinidade e o exercício da violência, apud BLAY, Eva Alterman. Feminismos e Masculinidades, p. 132).

MITO – os filhos não são afetados pela violência contra a mãe

VERDADE – filhos que presenciam ou vivenciam violência são afetados diretamente pela violência

Na violência doméstica e familiar, as filhas e os filhos são também são vítimas. É uma grande ilusão pensar não sofrem, não são afetados biologicamente e psicologicamente pelo que viram, ouviram e sentiram. Ademais, ainda que o pai seja afastado do lar, continuarão a presenciar o padrão de violência e discriminação nas visitas ao genitor, que se relacionará do mesmo modo com a nova parceira se não frequentar um Grupo Reflexivo. Por isso, nos processos, deve-se verificar a situação de risco das crianças e adolescentes.

Conforme levantamento da Central 180, 57,70% dos filhos e filhas presenciam a violência e 22,72% também sofreram a violência. Essas pequenas vítimas terão uma forte tendência a repetir o padrão de agressor ou de vítima na fase adulta.

Enfim.

Refletir sobre os mitos para desmistificar. Desmistificar vítimas, desmistificar autores de violência, desmistificar as filhas e os filhos desses lares. Desmistificar também o papel de cada uma e cada um, já que a violência ceia conosco todas as noites e acorda conosco todas as manhãs. Acompanha em sombra nossa vida, pois todas e todos temos ao menos uma mãe amada, senão também esposas, filhas e mulheres queridas. E mitos-palavras, mitos-olhares, mitos-gestos têm o poder de falar ou calar. Refletir para que não se permitam mais os “loucas”, “doentes”, “fracas”, “interesseiras” a não ser que se diga em tom de orgulho “LOUCAS POR JUSTIÇA”.

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