Tinha muitas camadas a Marielle. Cada tiro atingiu uma pele
(O Globo, 15/03/2018 – acesse no site de origem)
A execução de uma parlamentar no exercício do mandato é um atentado à democracia. O solitário argumento deveria ser suficiente para o Brasil exigir justiça pelo assassinato brutal da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Pedro Gomes. Mas Marielle foi mais. Mulher negra. De axé. Mãe. Favelada, nascida na Maré, conjunto de favelas da Zona Norte carioca. Socióloga formada pela PUC-Rio; mestre pela UFF. Quinta vereadora mais votada na capital em 2016, com 46 mil votos. Defensora dos direitos humanos. Combatia o extermínio da juventude negra, a intolerância religiosa, a LGBTfobia. Atuava pelas mulheres.
Tinha muitas camadas a Marielle. Foi vítima, por isso, de múltiplos assassinatos. Cada tiro atingiu uma pele. A pele da mulher negra. A pele da mãe. A pele da favelada. A pele da socióloga. A pele da defensora dos direitos humanos. A pele da representante eleita para a Câmara Municipal de uma cidade tomada pela brutalidade e pelo medo.
Marielle teve o corpo abatido. Sofreu morte física, mas também simbólica. Numa só mulher, muitos significados. Tinha raízes na favela e galhos frondosos na direção do asfalto. Com legitimidade, dialogava com a periferia, com a elite, com o mundo político, com as instituições democráticas. Era presente. Estudou. Formou-se em ciências sociais, completou o mestrado em administração pública. Falava a língua da academia, da política, dos salões, das ruas. Era franca e doce, de sorriso largo.
Faz tempo, ando pelas ruas, praças, auditórios, páginas da vida a dizer da importância da representatividade. Maioria na população e no eleitorado, mulheres têm fatia insignificante nos espaços de poder. A política carioca, fluminense, brasileira foi sequestrada por figuras que representam a si próprias, não se importam com os demais.
Marielle foi uma mulher negra que atendeu ao chamado para atuar pelo coletivo. Capacitada, em vez de cuidar da própria vida, da filha, da companheira, quis melhorar uma sociedade tão desigual quanto violenta. Saiu de um encontro com jovens negras, na Lapa, para ser executada no Estácio. Foi alvejada às nove e meia da noite de uma quarta-feira na via pública de um estado que está sob intervenção federal na segurança pública há um mês.
Morreu no asfalto, não na favela. Tantos saberes não a protegeram. Tampouco seus 46 mil votos transformados na utopia de um mandato coletivo, que oferecia ao Rio de Janeiro uma nova forma de fazer política. Seu corpo está morto. Suas ideias hão de sobreviver.