João* tem 31 anos e mora no extremo sul de São Paulo desde que nasceu. Já viveu no Jardim Ângela e no Capão Redondo, bairros que integram o sétimo pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) da capital. Dos 9 aos 26 anos, sofreu abuso sexual. Um dos agressores era o irmão mais velho. Além do irmão, ele foi abusado na infância por outros dois homens próximos à família. Cinco anos atrás, João entendeu, com ajuda médica, que era a vítima e que não precisava sentir culpa pela violência que sofria.
(UOL – 21/07/2017 – acesse no site de origem)
“É algo que nunca falei para a minha família, para amigos. Ninguém. A gente se sente um lixo. Acha que a culpa é nossa. Com ajuda de remédios, psicólogo e psiquiatra, comecei a viver. Comecei a existir”, afirmou João ao UOL. “Já pensei em suicídio, já pensei em fazer muito mal ao meu irmão. Mas agora quero começar a viver em paz. Já estou começando”, relatou.
O homem alto, com o porte físico forte, trabalhou nos últimos anos como segurança em uma empresa particular. Hoje, ele presta serviços à comunidade após ter cometido desacato quando agredia o irmão. “Na hora da briga, a polícia passou na rua. Fui argumentar com o policial e acabei sendo autuado por desacato. Por um acordo, estou pagando por isso com trabalho voluntário”, disse.
A realidade de João não é uma exceção em bairros do extremo sul de São Paulo, de acordo com dados divulgados pela SSP (Secretaria da Segurança Pública). O Capão Redondo é o líder no registro de estupros na capital este ano, segundo a SSP. Foram 37 casos registrados nos cinco primeiros meses. Desse total, 30 foram estupros de vulneráveis.
Na capital paulista, de janeiro a maio deste ano, ocorreram 997 estupros, alta de 14,5% em comparação ao mesmo período de 2016. Dois em cada três casos foram estupros de vulneráveis. Essa ramificação do crime é prevista no Código Penal quando há relação sexual sem o consentimento com doentes, deficientes mentais ou pessoas sem discernimento do que querem ou não (como embriagadas), além de relações com menores de 14 anos.
Ao UOL, o delegado Valter Bassoli, titular do 47º DP (Distrito Policial), localizado no bairro, afirmou que há ligação entre os crimes e a condição econômica da região. “Há, de fato, muitos casos. Investigamos todos. Quando há evidências, prendemos. Agora, são casos de problemas sociais. A sociedade tem esse problema grave. E é preciso, sim, enfrentar”, disse.
A SSP informou que “tem adotado medidas em combate aos estupros de vulneráveis, não apenas na região do Capão Redondo, mas em todo o Estado”. Entre as iniciativas da pasta, está a divulgação dos números de estupros de vulneráveis em suas estatísticas. “Visando ajudar na elaboração de políticas de prevenção contra esse tipo de crime”, argumentou ao UOL.
Outra medida adotada pela SSP foi o Protocolo Único de Atendimento. “Essa determinação estabelece um padrão de atendimento nos casos de violência contra a mulher, seja física ou sexual, para melhor acolher as vítimas. A SSP também mantém parceria com o Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica (Gevid), do Ministério Público, promovendo cursos de atualização para os policiais”, informou a pasta.
Pelos inquéritos instaurados no 47º DP, a SSP disse que quatro suspeitos foram presos em flagrante este ano. “Cabe destacar que, após o registro das ocorrências, as vítimas são encaminhadas ao Hospital Pérola Byington para realização de exames cautelares e atendimento por uma equipe multidisciplinar”, complementou a secretaria. A pasta também informa que São Paulo tem 133 Delegacias de Defesa da Mulher.
Vítima naturaliza o estupro, dizem especialistas
A promotora Fabíola Sucasas trabalhou os últimos quatro anos no Gevid (Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica) do MP (Ministério Público). Ela afirma que, quanto mais jovens as vítimas, mais os agressores tendem a ser próximos delas. “O desconhecido é o típico caso de estupro contra a mulher adulta. Quando existe relação de confiança, parentesco, proximidade, os agressores se utilizam dessa confiança para cometer os abusos”, afirmou ao UOL.
“As crianças, a maioria meninas, até acreditam que o abuso seja uma espécie de carinho. Elas acham que aquela é uma forma correta de se relacionar com o pai. E vão percebendo que não é normal conforme vão crescendo e socializando. Até se darem conta de que são vítimas”, complementou a promotora, que atua hoje no núcleo de Direitos Humanos do Centro de Apoio do MP.
Foi essa a sensação que João teve. Agora, a ideia dele é estudar. “Tenho me tratado e hoje sou uma pessoa melhor. Quero fazer faculdade de Educação Física e ser professor”, afirmou o ex-segurança. O irmão, que se tornou dependente químico, continua vivendo próximo a ele. “Dia desses, ele estava sozinho quando caiu e precisou de ajuda. Eu o ajudei e levei ao médico. Ele me fez muito mal, mas hoje quem está pior, eu ou ele?”, afirmou.
Para a socióloga Esther Solano, professora da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), o caso de João tem uma característica típica de quem sofreu estupro de vulnerável. “A criança não sabe o que está acontecendo e naturaliza isso. A violência é parte da vida dela e pronto. Não se fala mais nisso. Estupro de vulnerável é terrível”, afirmou ao UOL. “Quando a gente fala desse tipo de estupro, é preciso lembrar que a vítima carrega vergonha e sentimentos que dificultam a denúncia”, disse.
Para a socióloga espanhola, que vive no Brasil há sete anos, é possível que os números de estupro sejam ainda maiores, inclusive contra crianças. “Pode-se dizer que aumentou o número de registros de estupro. O Brasil é um país que estupra muito. Os números são altíssimos e assustadores. Pode ser talvez o dobro, o triplo [do número de casos registrados]”, afirmou.
Ela argumenta que nem todos os casos são registrados nos distritos policiais. “É difícil a denúncia, por todo o constrangimento, desde a delegacia até o IML (Instituto Médico Legal)”, complementou.
Ainda de acordo com Esther, há uma questão que deve, cada vez mais, ser problematizada: a “cultura do estupro”. Segundo ela, “o estupro é a violência final, porque há uma cultura de fato, que vai desde o assédio na rua e metrô às ‘cantadas’ as quais a mulher não quer receber. Está totalmente naturalizada a violência sexual. Como se fosse uma coisa do cotidiano”, disse.
*A reportagem trocou o nome para João para preservar a imagem do entrevistado
Luis Adorno