Engana-se quem acredita que apenas a penetração forçada se enquadra no crime de estupro. A lei é bem mais ampla do que isso!
(M de Mulher, 19/07/2017 – acesse no site de origem)
Muito tem se falado sobre estupro, mas esse ainda é um assunto bastante nebuloso no imaginário coletivo. Como se não bastasse a imensa falta de empatia em relação às vítimas, a maioria das pessoas continua achando que, para ser considerado estupro, o crime sexual precisa envolver penetração forçada.
Ledo engano! A classificação desse tipo crime é muito mais ampla, como mostra o Artigo 213 do Código Penal, reformulado em 2009. Pela lei, estupro consiste em “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”. A pena – sem agravantes – é de seis a dez anos de prisão.
Estupro NÃO se resume ao ato sexual
Como acontece frequentemente na legislação, o texto do Artigo 213 abre margem para um amplo leque de interpretações. Ana Paula Braga, advogada especializada em casos de violência contra a mulher, explica que inclusive as corriqueiras encochadas no transporte público podem ser enquadradas como estupro.
“Mas, apesar de isso estar muito expresso na lei, a gente ainda tem muitos operadores do direito despreparados para lidar com esse tipo de crime. Aí eles acabam enquadrando atos que não são tão extremos em outras condutas penais como, por exemplo, importunação ofensiva ao pudor”.
Ela explica que esse tipo de delito – importunação ofensiva ao pudor – diz respeito a crimes de menor potencial ofensivo, como cantadas de rua, por exemplo. “Acontece que quando o ato passa a ter interação física [como encochada e mão na bunda], já pode ser considerado estupro. Mas, como fica muito a critério de quem está aplicando a lei, geralmente o crime não chega a ser enquadrado como tal”.
Ana Paula também chama a atenção para o fato de que, a priori, o beijo forçado pode ser enquadrado como estupro. Mesmo assim, na prática, é bem difícil ver uma agressão desse tipo ser penalizada dessa forma.
Em outubro de 2016, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJMT) voltou atrás na condenação, por estupro, de um homem que abusou de uma garota de 15 anos. Na ocasião, ele agarrou a adolescente pelas costas, tapou a boca dela, jogou-a no chão, arrancou a blusa dela e começou a beijá-la, enquanto pressionava seu abdômen com os joelhos. O ato só foi interrompido, pois alguém chegou a tempo de acudir a menina. Inicialmente, o réu foi condenado a oito anos de prisão, mas recorreu e foi absolvido.
Felizmente, o caso foi parar no Superior Tribunal de Justiça (STJ), onde o ministro Rogério Schietti deu o veredito de que o homem realmente deveria sim ser condenado por estupro. Segundo Rogério, os juízes do Mato Grosso foram levianos frente ao sofrimento da vítima e a decisão deles contribuiu para reafirmar a cultura do estupro no Brasil.
Acontece que esse caso é claramente uma exceção à regra. Pesou na decisão do STJ o fato de que o crime foi bastante violento e de que a falta de consentimento estava explícita – com direito a testemunha. Mas a gente sabe muito bem que a grande maioria dos beijos forçados acontecem em circunstâncias muito mais subjetivas.
“Geralmente, quando as mulheres vão denunciar algo como um beijo forçado, isso acaba sendo considerado importunação ofensiva ao pudor ou às vezes nem dá em nada. [Na delegacia] eles muitas vezes nem querem registrar, pois acham que não é grave o suficiente. É uma batalha diária para que se tenha o entendimento de que a lei deve ser aplicada”, diz Ana Paula.
A vítima não está em condições de consentir? Então é estupro
Outro ponto importante quando se fala de crimes sexuais é o chamado estupro de vulnerável. A advogada explica que essa cláusula da lei considera como estupro os crimes envolvendo vítimas menores de 14 anos, aquelas que tenham deficiência mental ou que, numa situação momentânea, não tenham plena capacidade de reagir – como em caso de embriaguez e/ou uso de droga; quando a vítima está desacordada; ou quando simplesmente está dormindo profundamente.
E, em se tratando de casos em que a vítima encontra-se vulnerável por causa do uso de álcool e drogas, quem faz a denúncia também acaba esbarrando numa enorme dificuldade de comprovar o estupro – mesmo quando há penetração. Ana Paula explica que a forma como a lei foi formulada abre uma enorme margem para a impunidade, pois o texto jamais utiliza a palavra consentimento. Em vez disso, faz uso das palavras “violência ou grave ameaça”.
Ou seja: sem sinais físicos de violência e sem testemunhas de que a vítima estava fora de suas faculdades mentais durante o ato sexual, apenas a denúncia acaba não sendo suficiente para que o agressor seja devidamente punido. Além disso, a advogada cita a dificuldade de legitimar que a violência psicológica também deveria ser amplamente levada em consideração.
“A principal prova do estupro ainda é aquela colhida no exame de corpo de delito – que vai avaliar se a mulher teve relação sexual e se essa relação resultou em alguma lesão. E eu considero essa uma prova muito perversa. Porque, se a mulher não fizer um boletim de ocorrência logo depois do estupro, para só então ser liberado o exame de corpo de delito, é muito comum que as lesões desapareçam. E às vezes nem há lesão aparente. Aí o laudo é considerado inconclusivo”.
Ele forçou a penetração sem camisinha? É estupro também
Desde que o mundo é mundo a gente se depara com homens que insistem em não usar camisinha. Recentemente, porém, a prática está sendo muito comentada e, nos Estados Unidos, já existe até um termo pra denominar o ato de tirar o preservativo sem consentimento durante o sexo: stealthing.
“Se o cara se recusa a usar camisinha e força o sexo sem proteção, isso é estupro. Agora, se os dois já estão tendo a relação e ele tira o preservativo sem o consentimento dela e sem ela saber, isso é considerado violação sexual mediante fraude. Um caso desse tipo também pode ser enquadrado no crime de perigo de contágio venéreo“, explica a advogada. A pena para violação sexual mediante fraude é de dois a seis anos de prisão e para perigo de contágio venéreo é de três meses a um ano, ou multa.
Ao final, Ana Paula recomenda que as vítimas não desistam de denunciar seus agressores, por mais que tomem conhecimento das dificuldades. “Precisamos incentivar as mulheres a denunciar. E também precisamos trabalhar para que a lei seja devidamente aplicada. A gente sabe que, em primeiro lugar, é difícil para a pessoa se reconhecer como vítima, ainda mais quando o estupro é cometido por alguém próximo a ela. Mas eu aconselho sempre a denunciar, porque a gente precisa combater esse ciclo de violência contra a mulher”.
Júlia Warken