“‘Lei Maria da Penha virtual’, aprovada na Câmara, não ataca o problema”, defende pesquisadora.
Em 21 de maio de 2016, um caso de violência sexual envolvendo uma adolescente de 16 anos foi amplamente comentado nas redes sociais após um vídeo do crime ser postado no Twitter.
(HuffPost Brasil, 18/03/2017 – acesse no site de origem)
“Em meio à importante mobilização que o caso gerou, um desses aspectos ficou na penumbra: o compartilhamento em si do vídeo pelas redes sociais, e então a complexa interação entre gênero e internet. Chega a ser curiosa a audácia de um dos agressores em postar provas, contra si e seus parceiros, de um crime chocante, numa rede social em que conteúdos são facilmente viralizados. Essa audácia aponta facilmente para concepções sobre gênero – os agressores acreditaram que seu comportamento de violência contra uma mulher seria aprovado? E sobre internet – eles julgaram que não seriam identificados, perseguidos, punidos?”
Quem propõe o questionamento são as autoras do livro O Corpo é o Codigo, Mariana Valente e Natália Neris. A reflexão, publicada no site do Sesc de São Paulo, é um pontapé para o que foi a obra produzida pela dupla em parceria com Juliana Ruiz e Lucas Bulgarelli.
O livro é o resumo de um ano de trabalho do quarteto em sua linha de pesquisa “Internet & Gênero, Raça e outros marcadores sociais”. Em entrevista ao HuffPost Brasil, Natália Neris explica que durante o período de 2015 e 2016, o grupo, que faz parte do InternetLab, analisou todas as decisões judiciais sobre o tema do revenge porn no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
“Podemos destacar algumas características desse processo. Há uma subnotificação dos crimes. A maioria dos casos nem chega ao sistema de Justiça porque as pessoas não acreditam que eles vão ser julgados. Quem insiste e protocola a denúncia, vai ter que enfrentar diversos obstáculos, como a questão da produção de provas e de como vai se dar o encaminhamento deste processo. Aqueles que chegam à última instância no TJ nunca são enquadrados na Lei Maria da Penha. Depois, metade dos casos analisados envolviam crianças e adolescentes. Neles, é aplicado o Estatuto da Criança e do Adolescente que tem uma designação bastante rígida sobre o que é ‘pedofilia’, então muitos casos escapam. Nossa legislação é antiga e foi pensada em uma época em que não se tinha o uso da internet como hoje. Em muitos dos casos não há a disseminação de imagens, mas a ameaça, a extorsão ou até o estupro, quando o agressor insiste em manter relações sexuais com a vítima em troca de não enviar as fotos.”
Pula para 2017.
Em 20 de fevereiro, a Câmara dos Deputados aprovou o projeto de lei 5555/13, mais conhecido como a “Lei Maria da Penha Virtual”. O projeto, de autoria do deputado João Arruda (PMDB-PR), segue em tramitação no regime de urgência para o Senado.
Ementa do PL 5555/13:
Inclui a comunicação no rol de direitos assegurados à mulher pela Lei Maria da Penha, bem como reconhece que a violação da sua intimidade consiste em uma das formas de violência doméstica e familiar; tipifica a exposição pública da intimidade sexual; e altera a Lei n° 11.340 de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha), e o Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal).
Em entrevista ao HuffPost Brasil, Arruda explica que o PL não gerou nenhum conflito entre os deputados. Para ele, a dificuldade de aprová-lo está na visão machista da sociedade.
“A única dificuldade que nós temos com o projeto é a visão da sociedade machista que condena a mulher antes de condenar o criminoso. É uma atividade ilegal registrar os momentos intímos. Se você autorizar a gravação de imagens, mesmo sendo uma pessoa que você confia, não significa que você autorize ela a disseminá-las. Isso causa um prejuízo enorme a imagem da mulher e a toda família. Esse conceito machista de que se a mulher faz algo é absurdo e se o homem faz é legal precisa mudar. O projeto de lei também atende homens que tiveram suas imagens divulgadas, mas a gente percebe que os homens não sofrem com isso da mesma forma que as mulheres. Precisamos acabar com esse preconceito.”
Honra x Liberdade
“A única dificuldade que nós temos com o projeto é a visão da sociedade machista que condena a mulher antes de condenar o criminoso.”
Ao tomar conhecimento da versão final do projeto, Natália Neris, que acompanhou todo o processo de discussão sobre o tema em audiências públicas, chama atenção para detalhes desta aprovação que considera como “retrocessos”.
“Esse projeto de lei é de 2013. Nós acompanhamos, juntamente com outros grupos da sociedade civil, a formatação de um texto que foi produzido colaborativamente em audiências públicas. Nós investigamos na pesquisa como o judiciário tem tratado o tema. Esse texto aprovado pela Câmara não é o mesmo que havia sido construído desde 2013. Como está, o PL não vai atacar o problema.”
A coordenadora de pesquisa do InternetLab argumenta que no texto aprovado houve o deslocamento desse tipo de crime no código penal.
“Nos textos discutidos nas audiências estava previsto que o crime seria incluído no capítulo que contempla os crimes contra liberdade sexual, como o estupro. Mas houve o deslocamento para o capítulo de crimes contra a honra, como é tratado os casos de injúria e difamação.”
De acordo com Neris, essa questão é problemática porque ela tem questões processuais importantes. Com a mudança, a vitíma vai precisar de um advogado privado. Caso o PL contemplasse o capítulo de crimes contra liberdade sexual, a vítima contaria com o apoio obrigatório do Ministério Público e não teria custos com advogados.
Há ainda um peso simbólico, segundo a pesquisadora: “Tratar a exposição de imagem intíma como um crime que mancha sua autoestima e reputação é bastante conservador. Porque a gente não está falando de autoestima ou reputação, mas de dignidade sexual. A disseminação de imagens íntimas não é uma questão meramente de ‘vergonha’, mas viola a liberdade das mulheres de escolher o exercício de sua sexualidade. Essa questão é vista com preocupação por nós, principalmente no que diz respeito à luta política das mulheres”.
Até 2005, a vinculação entre a sexualidade e a reputação das mulheres esteve presente no direito brasileiro. A partir daquele ano o conceito de “mulher honesta” do Código Penal foi eliminado.
Natália Neris também chama a atenção para o fato de que atualmente a disseminação não consensual de imagens intímas já está sujeita às punições previstas no Código Penal (Decreto-Lei 2.848/40) para os crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8.069/90). Para a pesquisadora, o projeto de lei de Arruda já nasce com problemas similares à legislação vigente.
Questionado sobre o deslocamento da tipificação do crime, João Arruda, autor do projeto, não demonstrou a mesma preocupação que a pesquisadora.
Ao HuffPost Brasil, o deputado disse não estar “ciente” da ocorrência de mudanças no texto, já que a matéria passou por diversos outros atores no Congresso. Ele defende a manutenção do mérito do texto já que garante a prisão ao autor do crime.
“O grande desafio era ter a possibilidade de ao encontrar o autor do crime e prendê-lo. Essa é a vontade das mulheres.”
Um texto alternativo ao projeto previa detenção de três meses a um ano para quem ofender a dignidade ou o decoro de pessoa com quem manteve relacionamento ao divulgar imagens, vídeos ou outro material com cenas de nudez ou de atos sexuais.
A versão aprovada, no entanto, estabelece medidas como a inclusão, na Lei Maria da Penha, de dispositivo que considera a violação da intimidade da mulher como forma de violência doméstica e familiar.
Neste caso, o agressor poderá ser punido com até três anos de prisão sem direito à fiança. Se o crime for cometido por cônjuge, companheiro, noivo, namorado ou alguém que manteve relacionamento amoroso com a vítima, a pena será aumentada em um terço. Se a vítima for menor de 18 anos ou deficiente físico, o aumento será de 50%. Ao juiz, cabe ordenar a remoção do conteúdo da internet, que deve ser feita em até 24 horas.
“A pornografia de vingança é um problema grave, deve ser combatido. A urgência em tratar do tema, todavia, deve levar em conta também em que termos isso ocorrerá, uma vez que a forma como a conduta será regulada tem impactos práticos e processuais importantes. Observa-se que as sugestões dos atores civis não se refletiram no projeto que foi encaminhado ao Senado. É importante, que também no Senado o projeto seja discutido, ponderado e até mesmo alterado em seu mérito se esse movimento garantir uma redação que de fato seja efetiva para o enfrentamento do problema”, explicou Natália Neris ao HuffPost Brasil.