Dados sobre registros, denúncias e condenações mostram avanços e obstáculos da lei
(Nexo, 16/11/2017 – acesse no site de origem)
O assassinato da adolescente Raphaella Noviski, de 16 anos, morta com dez tiros dentro de uma escola em Goiás no último dia 6, trouxe novamente à tona a discussão sobre o crime de feminicídio. Desde março de 2015, são considerados assim os homicídios que têm como motivação, como no caso de Raphaella, a condição feminina da vítima. A lei 13.104/2015 alterou o Código Penal para incluir o feminicídio como crime hediondo.
Historicamente, o caminho entre a morte de uma mulher e uma eventual condenação do autor pela Justiça é longo. Mais de dois anos após sua entrada em vigor, a lei do feminicídio mostra que é possível alterar este quadro, mas ainda esbarra em obstáculos, principalmente em se tratando dos registros policiais do crime. Três números mostram os avanços e desafios para a aplicação da lei.
1. Poucas mortes de mulheres são registradas pela polícia como feminicídio, ainda
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em outubro pelo Fórum Brasil de Segurança Pública, 4.657 mulheres foram mortas em 2016, mas apenas 585 casos foram registrados como feminicídio pela polícia. Isso representa 12% do total de ocorrências. Apesar de nem todos as mortes de mulheres serem feminicídios – casos em que a mulher morre em decorrência de um roubo, por exemplo, são classificados como latrocínios –, o número indica que há subnotificação.
585 mortes de mulheres foram registradas como feminicídio
A diretora do Fórum, Samira Bueno, disse ao Nexo que isto mostra a dificuldade de implementação da lei por parte da polícia civil. “Isso se torna extremamente grave na medida em que a maior parte dos feminicídios no Brasil sao feminicídios íntimos, ou seja, praticados pelos parceiros, e que muitas vezes essa mulher já vinha de um histórico de violência doméstica etc. O que se questiona, portanto, é o quanto as polícias civis foram capazes de incorporar em relação à perspectiva de gênero no atendimento às mulheres em situação de violência.”
A promotora Fabíola Sucasas Negrão Covas, de São Paulo, que integra o Grupo de Atuação Especial de Enfrentamento à Violência Doméstica, disse ao Nexo que, de acordo com as diretrizes da ONU Mulheres, a hipótese de feminicídio deveria fazer parte da linha de investigação desde o princípio. Com isso, a perícia policial contemplaria essa possibilidade, verificando traços de violência no corpo da vítima, assim como o histórico de conflitos nas relações do casal. Caso não houvesse indícios de feminicídio, a hipótese poderia ser descartada.
2. Quando os casos são registrados como feminicídio, há mais denúncias do que nos casos de homicídios tradicionais
Entre março de 2016 e março de 2017, 2.925 inquéritos de feminicídio foram abertos no país, de acordo com a Enasp (Estratégia Nacional de Justiça e Segurança Pública), uma parceria entre o Ministério da Justiça, o Conselho Nacional de Justiça e o Conselho Nacional do Ministério Público. O número é bem superior ao apontado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (que é de 585). Os dois levantamentos se referem ao ano de 2016, mas têm fontes diferentes: o Anuário usa informações das secretarias estaduais de Segurança Pública, e a Enasp, das promotorias estaduais.
Mesmo assim, os dados de registros de feminicídio em um ano são discrepantes. Para o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público), uma possível explicação é que os casos estejam sendo reavaliados pelo Ministério Público e pelo Judiciário, que passa a considerá-los feminicídios. A promotora de São Paulo Valéria Diez Scarance, coordenadora da Comissão Permanente de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, disse ao Nexo que esta é uma explicação plausível. “Mesmo não havendo o enquadramento como feminicídio no início, nada impede que o Ministério Público faça a denúncia por feminicídio. A tipificação da autoridade policial é provisória.”
50% dos inquéritos de feminicídio viraram denúncias
Acompanhar o andamento dos casos de feminicídio era uma das metas da Enasp para os anos de 2016 e 2017. O Ministério Público apresentou denúncia formal à Justiça em metade do 2.925 inquéritos de feminicídio, de acordo com a Enasp. Isso significa que, neste casos, foi possível apontar um (ou mais) culpados. Outros 43% ainda estão em investigação. O número de denúncias é bem superior àquele obtido em outro esforço realizado pela Enasp para fazer inquéritos avançarem. Entre 2010 e 2012, houve um mutirão que tentou solucionar casos de homicídio que haviam sido abertos antes de 2007 mas não haviam sido concluídos. A grande maioria dos casos (80%) foi arquivada.
Para Scarance, os casos de feminicídio podem gerar mais denúncias porque, como a maior parte dos crimes é cometida pelo parceiro, a autoria é conhecida. “Como feminicídio, em regra, é um crime com autoria certa, há um número infinitamente maior de denúncias do que de arquivamentos.”
3. Já houve condenações, mas os dados são inconsistentes
Desde 2015, quando a lei do feminicídio passou a valer, já houve condenações. Mas é difícil saber exatamente quantas e quais as sentenças, porque os tribunais de Justiça do país ainda não fazem uma compilação confiável destes dados.
O Conselho Nacional de Justiça reuniu informações enviadas por todos os tribunais de Justiça do país sobre feminicídio. Segundo os dados, no final de 2016, estavam em andamento 11.020 casos de feminicídio. O levantamento, porém, apresenta inconsistências. Enquanto São Paulo aparece com 189 casos, Minas Gerais tem 4.018 – número muito superior a todos os estados. Até a conclusão desta reportagem, o Tribunal de Justiça de MG não havia explicado ao Nexo como fez sua classificação. Segundo o CNJ, os tribunais de Justiça ainda estão se adaptando à nova legislação e, por isso, os dados são imprecisos e devem ser analisados com cautela.
De acordo com esse levantamento, pelo menos 4.289 pessoas estariam cumprindo pena por crime de feminicídio no país no final de 2016. Porém, novamente os dados são puxados por MG, com 4.104 casos. Sem o estado, o número reflete uma realidade diferente, com cerca de 185 pessoas cumprindo pena pelo crime.
A falta de informações precisas pode ser uma problema para a formulação de políticas públicas, de acordo com a advogada e socióloga Fernanda Emy Matsuda. “A ideia era que chamar o assassinato de mulheres por razões de gênero de feminicídio poderia contribuir para a produção de estatísticas, para se conhecer a dimensão do problema e pensar em políticas públicas mais dirigidas, voltadas à prevenção. Mas sabemos que a produção de dados pelos estados é muito ruim”, afirmou em entrevista ao Nexo.
Em São Paulo, os dados também são desencontrados. Segundo o Tribunal de Justiça, houve cinco condenações por feminicídio em 2016. A promotora Scarance, porém, afirma que o número está subestimado. De acordo com ela, grande parte dos crimes que chegam ao Tribunal do Júri no Estado são feminicídios, e a maior parte dos julgamentos resulta em condenações. Ela destaca, porém, que o processo no Tribunal do Júri é mais lento, o que pode esconder estas condenações nas estatísticas. Por ser crime contra a vida, feminicídio é julgado por jurados, e não por um juiz.
Outra preocupação em relação à aplicação da lei, afirma a promotora, é avaliar se as penas estão sendo atenuadas. Ela explica que, em julgamento no Tribunal do Júri, muitas vezes os réus fazem ataques à honra das vítimas, ou se dizem homens apaixonados que perderam a cabeça e cometeram crimes passionais. Esse tipo de argumentação pode influenciar o júri, resultando numa pena menor.
“É um grande risco em plenário: por ausência de conhecimento de gênero, das circunstâncias em que estes crimes ocorrem, haja um abrandamento da pena”, diz Scarance.
É isto que parece estar ocorrendo em Mato Grosso do Sul, estado campeão em assassinatos de mulheres em 2016, segundo o Anuário, com taxa de 7,6 homicídios a cada 100 mil mulheres. O estado faz um acompanhamento mais detalhado dos casos de feminicídio. Nos dois anos após a entrada da lei de vigor (entre março de 2015 e março de 2017), 32 casos foram julgados, e, em todos, os réus foram condenados. Porém, em cerca de um terço dos casos, os jurados entenderam que não houve feminicídio, o que diminui a pena do réu.
A promotora do MS, Luciana do Amaral Rabelo, afirma que isto também poderia ocorrer se o crime fosse julgado por um juiz, porque a desigualdade de gênero está presente em toda a sociedade. “Em crimes em que a questão de gênero está envolvida, não só os jurados como o juiz estão envolvidos em uma cultura de machismo que ainda é muito presente. Precisamos ter mais educação e capacitação na sociedade, em geral, para que não haja mais amenização da pena quando o assunto é gênero”, disse ao Nexo.
Luiza Bandeira