(Jota, 09/06/2016) O caso recente da menina estuprada por 33 homens gerou um agendamento do debate sobre patriarcalismo, gênero e suas consequências nas vidas de homens e mulheres. O debate no campo da grande política, das redes sociais, dos movimentos feministas, e mesmo no processo de investigação do caso, tem sido antes de tudo uma luta pelo poder de narrar o que se sucedeu.
A compreensão do ato brutal de violência contra a menina no campo da “cultura do estupro” tem sido uma das principais disputas narrativas. O termo foi inicialmente usado na década de 1970 nos EUA pelos movimentos feministas e vem ganhando, desde então, diversos usos, apropriações e ressignificações. Ele permite localizar a violência de 33 homens contra uma menina em suas dimensões institucionais e estruturais.
A disputa narrativa pela “cultura do estupro” permite olhar além da cena brutal e colocar em jogo formas de sociabilidade e de representações do masculino e do feminino em sociedade. Ela avança ao superar a narrativa biológica dos homens ávidos e descontrolados em busca do prazer sexual. Garante que a narrativa sobre a monstruosidade dos 33 homens também não seja válida. Os 33 homens são homens quaisquer que, imersos na cultura patriarcal, tomaram o corpo da menina como símbolo de seu poder e de sua virilidade, filmaram seus atos e partilharam em tom de bravata o que para eles era um bem-feito.
A narrativa da “cultura do estupro” ajuda também a explicar a reação do sistema de justiça criminal. Quando um delegado de polícia considera que são provas insuficientes de um crime de estupro o testemunho da vítima e um vídeo que registra homens manipulando o corpo de uma menina desacordada, ele está criando obstáculo para que vítimas de violência sexual sejam adequadamente atendidas pelo sistema de justiça. E a razão desse e de tantos outros obstáculos está fundada na cultura patriarcal que revitimiza aquela mulher que ousa requerer do Estado uma resposta à violação sofrida.
A narrativa da “cultura do estupro” permite compreender as reações promovidas nas redes sociais que questionam quem era a menina, onde ela estava, que roupa vestia, que hábitos tinha, como perguntas que farejam a responsabilidade da vítima pela violência dos homens e desqualificam seu testemunho.
É preciso, entretanto, que estejamos advertidas quanto a apropriações simplificadoras e até mesmo patriarcais da expressão “cultura do estupro”. Um exemplo que avilta é a declaração do novo secretário de Segurança de São Paulo, Mágino Alves Barbosa Filho, de que os estupros em SP estariam ligados à crise econômica: “O camarada perdeu o emprego. Ele começa a se desesperar, começa a beber. Um monte de gente, que nunca cometeria qualquer tipo de crime, hoje está praticando o pequeno ilícito e, às vezes, até esses crimes mais graves”.
Foram muitas as apropriações patriarcais, porém a mais importante talvez seja a da grande política. Michel Temer e seu Ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, conhecido por suas práticas nada democráticas de organização da polícia no Estado de São Paulo, anunciaram medidas de incremento da segurança pública, por meio de repasse de verbas, informatização de informações sobre os homens agressores e pagamento extras a policiais. Michel Temer responde por via da repressão aos homens estupradores. E, ao mesmo tempo, nomeia como Secretária da Política de Mulheres uma defensora da proibição de aborto inclusive no caso de estupro. Ainda no campo da grande política, senadoras com uma história comprometida com a luta feminista propõem projeto de lei pela alteração do tipo penal e aumento de penas para casos de estupro coletivo.
Os homens crescidos na cultura patriarcal que os ensina que o corpo das mulheres é deles agora receberão a repressão adequada. Seja pela polícia violadora de direitos do modelo de ação do Ministro Alexandre de Moraes, seja pela previsão de aumento de pena nas máquinas de tortura chamadas de prisão.
O que um uso patriarcal da “cultura do estupro” pode validar? Farejaremos agora os homens estupradores em busca da devida retribuição? O que está de fora dessas apropriações redutoras mas que, de fato, agrega a luta pelo fim da violência contra as mulheres é a educação de gênero nas escolas, o respeito à autonomia sexual e reprodutiva das mulheres, a proteção a todas as formas de família. O que está de fora do sequestro patriarcal da “cultura do estupro” é o combate ao racismo, à homofobia e à lesbofobia, a criação de condições para participação política paritária, o fim da divisão sexual do trabalho. Combater a cultura do estupro de forma genuína exige laicidade do Estado e uma defesa radical dos valores de igualdade e diversidade.
Acesse no site de origem: O sequestro patriarcal da “cultura do estupro”, por Camila Prando e Janaína Penalva (Jota, 09/06/2016)