Eleito melhor filme no Festival Internacional Mujeres en Foco, na Argentina, dias atrás, o documentário “Legítima Defesa”, de Leda (produção) e Sara Stopazzolli (pesquisa e roteiro), é um soco no estômago. Dirigido por Susanna Lira, o filme mostra mulheres vítimas de violência doméstica que mataram seus companheiros para sobreviver. Sara e Leda conversaram com Maria Fortuna.
(O Globo, 16/12/2017 – acesse no site de origem)
O último recurso dessas mulheres para se defender foi matar seus companheiros. Como os filhos dessas relações encaram esse ato extremo?
Leda: Existe uma forte relação entre as mulheres e seus filhos, que são as principais testemunhas de tudo o que as mães passaram. Eles as absolvem, são carinhosos e preocupados com o bem-estar delas, o que poderia ser questionado por alguém de fora que não viveu a realidade dessas famílias, afinal, seus pais foram mortos.
Além de terem agido em legítima defesa, há outras semelhanças que ligam essas mulheres?
Sara: A crença de que em algum momento o homem poderia mudar; o apoio dos filhos após o fato, e a culpa que, mesmo após absolvidas pela Justiça, as acompanha para sempre.
Tocar na ferida as ajudou a exorcizar a violência?
Sara: Saber que contribuem para o debate sobre o tema lhes dá alento. O que viveram pode ajudar outras mulheres que passam pelo mesmo ciclo de violência de gênero a repensar suas histórias. O objetivo do filme é refletir sobre a violência doméstica e não julgá-las. Entrevistei dez mulheres, e por medo ou vergonha, metade topou falar sem mostrar o rosto. Não queria abrir mão de mostrá-las com dignidade, sem rostos borrados. Contamos as histórias de Daiane e Úrsula porque são mulheres com poder de superação, têm consciência da tragédia que viveram, da importância de compartilhar suas histórias, estão estudando e buscam fazer o melhor de suas vidas.
Assistindo ao filme percebe-se que a violência masculina está diretamente ligada ao medo do homem diante da potência da mulher. Como foi para vocês, mulheres, mergulhar neste tema?
Sara: Foi intenso e transformador. Fiquei à flor da pele, chorei, tive insônia, mas havia uma força me dizendo que mais gente deveria ter acesso a essas histórias. O processo me fez enxergar mais camadas do machismo estrutural que existe no país, que objetifica, tira a autoestima das mulheres e gera essa violência toda.
Leda: Foi forte tanto por entrar na intimidade de mulheres com histórias de violência e sofrimento e também por saber que elas que se repetem por todos os cantos. Em muitos casos, a violência vem depois que o homem começa a se sentir contrariado, quando a mulher não faz tudo o que ele quer; e o que ele quer é, às vezes, que ela fique em casa calada, ou que tenha relações sexuais sempre do jeito dele. Ou seja, a violência é uma tentativa do homem de matar o sujeito que há na mulher e de fazê-la voltar ao estado de “objeto”.
Qual o sentimento que ficou depois do filme?
Sara: Que é muito importante mostrar essas tragédias como forma de resistência, de transformação. O recorte do documentário é das situações que chegaram a um extremo, mas as histórias também revelam a estrutura social machista, de comportamentos que estão naturalizados e que precisam ser mudados.
Maria Fortuna