Promotora do grupo de violência doméstica do Ministério Público Estadual Justiça Silvia Chakian avalia que decisão que pôs na rua suspeito de estupro em um ônibus em São Paulo revela que a integridade psicológica e dignidade sexual da vítima ‘não valem nada para a Justiça’
(O Estado de S. Paulo, 01/09/2017 – acesse no site de origem)
Um homem que, após 14 passagens pela Polícia por violência sexual contra mulheres, é posto novamente em liberdade por um juiz, representa, segundo a promotora de Justiça Silvia Chakian, que a ‘integridade psicológica e dignidade sexual’ da vítima ‘não valem nada para a Justiça’. Promotora do grupo de violência doméstica do Ministério Público Estadual de São Paulo, Silvia ressalta que o caso, ocorrido nesta terça-feira, 29, ‘não é isolado’.
Segundo apuraram os repórteres do Estadão, Marianna Holanda, Felipe Resk e Marco Antônio Carvalho, o ajudante de serviços gerais Diego Ferreira de Novais, de 27 anos, acumulou, nesta quarta-feira, sua 15ª passagem pela polícia por mostrar seu pênis e passar em suas vítimas no transporte público. Ao mandar soltá-lo, pego em flagrante pelo suposto reiterado crime, o juiz José Eugenio do Amaral Souza Neto afirmou na sentença que não viu possibilidade de enquadrá-lo por estupro por não ter havido “constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça” no caso.
“Para o agressor, a mensagem é a de estímulo à prática de novos delitos”, alerta a promotora Silvia Chakian, em entrevista ao Estado.
ESTADÃO: A Justiça soltou o homem flagrado no ônibus ejaculando em uma passageira. o que dizer para esta vítima?
PROMOTORA SILVIA CHAKIAN: A situação é mesmo revoltante, causa muita indignação. A conduta do agressor é grave, causa repulsa e é aviltante, porque humilha a vítima, atentando contra sua dignidade sexual, causando abalo emocional.
E infelizmente, esse caso não é isolado. Ocorre com uma frequência tão assustadora que a mídia sequer consegue acompanhar. Esse, especificamente, teve repercussão porque houve prisão em flagrante e o agressor foi solto muito rapidamente, mesmo com muitas passagens por crimes de mesma natureza, o que causa revolta. Mas são muitos casos, infelizmente. Para essa vítima eu diria que não temos outra saída senão lutar para que situações como essa não fiquem por isso mesmo. Com todas as forças, não aceitar, não nos calar ou omitir, provocar mudanças, conscientizar a sociedade e questionar o funcionamento das leis e instituições que não estão protegendo as mulheres. Rever o sistema como um todo. Até que qualquer mulher possa caminhar no espaço público sem sentir medo, ou apanhar um transporte público sem ser violentada, não podemos parar de lutar.
ESTADÃO: A Justiça é condescendente com casos de violência sexual?
PROMOTORA: Casos como esse refletem como ainda precisamos avançar (muito!) na necessidade de incorporação de um olhar de gênero para o julgamento da violência que é praticada contra a mulher, por ela ser mulher, ou seja, por circunstâncias de sua condição feminina.
Num caso como esse, para a vítima, infelizmente, a mensagem foi a de que a sua integridade psicológica e dignidade sexual não valem nada para a justiça. Para o agressor, a mensagem foi a de estímulo à prática de novos delitos, uma vez que a impunidade sempre anda de mãos dadas com a violência. E para a sociedade, o recado desastroso é a de que a dignidade sexual das mulheres é questão de menor importância para a justiça. Vale menos que a violência patrimonial, por exemplo. Menos que um furto de supermercado.
ESTADÃO: Em sua decisão, o juiz José Eugenio do Amaral Souza Neto afirmou não ver estupro no caso específico de Diego Ferreira de Novais. Há brechas na lei que permitam essa interpretação?
PROMOTORA: No caso em discussão poderia ser analisada a ocorrência do crime de estupro ou mesmo da violação sexual mediante fraude (ou qualquer outro meio que dificulte a reação da vítima), ambas figuras, ao meu ver, de gravidade mais compatível com os fatos que a contravenção. De qualquer modo, não dá para desconsiderar a deficiência da nossa legislação penal, que tem deixado aplicadores da lei em situação bem difícil em alguns casos. Me refiro à ausência de um tipo penal intermediário, com graduação de pena mais adequada a essas condutas. Enquanto estivermos entre a contravenção de perturbação ao pudor (pena insignificante) e o crime hediondo do estupro (pena mais alta) sem a graduação intermediária, continuaremos com essa margem de interpretação para decisões como a tomada. É preciso, ao meu ver, sem prejuízo da necessidade de um olhar mais específico e humano para esses casos, também de aprimoramento da legislação penal como um todo, no tocante aos crimes sexuais.
Luiz Vassallo