(Gazeta do Povo, 05/06/2016) Um estupro a cada 11 minutos é denunciado no Brasil; ainda assim, estima-se que apenas 10% dos casos cheguem à polícia
Um estupro a cada 11 minutos. Segundo o 9º Anuário Brasileiro de Segurança, essa é a frequência com que esse tipo de crime acontece no Brasil. A estimativa é baseada nos mais de 47 mil casos denunciados por ano à polícia. No entanto, dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontam que esse número corresponde a apenas 10% do total de casos – contabilizados a partir da base de dados do Ministério da Saúde.
Especialistas consultados pela reportagem apontam uma conjugação de fatores que leva mulheres a silenciarem a violência que sofrem: seja porque elas não reconhecem certas atitudes como violadoras; porque têm medo de serem culpabilizadas ou porque a estrutura das delegacias é burocrática e sobrecarregada e, às vezes, o resultado prático da denúncia demora a aparecer – isso quando o registro de Boletim de Ocorrência não é rejeitado.
“Há uma naturalização dos atos de violência contra a mulher. É cultural e não se transforma um comportamento pela simples criação de uma lei. Embora haja um esforço para que o atendimento seja humanizado, nem sempre isso ocorre”, observa a defensora pública Camille da Costa. Ela avalia que a presença predominante de homens nesses ambientes também pode ser intimidadora.
Capacitação vai além de conhecer a lei
“Tive que contar a mesma história repetidamente para agentes homens. Perguntavam se não era calúnia, se meu agressor tinha mesmo invadido minha casa, se eu tinha provas. A mulher que denuncia também sofre violência institucional. Se ela não conhece a lei, se não conhece as palavras certas, não consegue abrir um BO. E sem um BO ela não tem ajuda do Estado”, diz Lívia, que tem sete medidas protetivas contra um ex-namorado após ser ameaçada de morte.
A falta de sensibilização por parte de policiais e peritos durante o depoimento é mencionada na maioria dos relatos compartilhados com a reportagem. Mas o que seria uma capacitação adequada para quem atende mulheres em situação de violência?
A delegada Sâmia Coser, titular da Delegacia da Mulher de Curitiba, explica que a capacitação dos policiais consiste em uma disciplina sobre violência doméstica e familiar durante a formação na Escola de Polícia, na qual são ensinados os procedimentos da Lei Maria da Penha e da delegacia especializada.
“Mas não existe uma capacitação para atendimento de um determinado setor. Trabalhamos com os funcionários da delegacia: por exemplo, observamos se um investigador registra um número muito menor de Boletins de Ocorrência do que outro, aí queremos entender qual é a dificuldade em relação ao atendimento.”
Para a assistente social Janaine dos Santos, que atua diretamente com mulheres vítimas de violência na Defensoria Pública do Paraná, é necessário preparo para compreender o contexto no qual a vítima está inserida e para não a responsabilizar pela situação em que se encontra. “É trata-la como cidadã de direitos. Vítimas de outros crimes não são questionadas sobre o que fizeram para que aquilo acontecesse com elas, mas a mulher é questionada”, explica Janaine, que recentemente participou de capacitação para atuar na Casa da Mulher Brasileira.
Perguntas invasivas afastam vítimas
São comuns também os relatos de mulheres que se sentiram desrespeitadas e julgadas por conta de perguntas feitas pelos investigadores. “Senti que tinha de provar que era vítima. Na delegacia havia um cartaz alertando que falso testemunho era crime, mas não havia um único banner esclarecendo quais são os direitos das mulheres”, conta Silvana, que conseguiu levar a denúncia contra o ex-companheiro adiante após uma tentativa de estupro.
De acordo com a delegada Sâmia Coser, titular da Delegacia da Mulher de Curitiba, há uma razão para que certas perguntas sejam feitas, principalmente em casos de crimes sexuais: a coleta de provas.
“Quando perguntamos quando a vítima teve a última relação sexual consentida é porque o exame vai buscar por sêmen e esse material genético pode ser do companheiro dela, e não do agressor. Pode aparecer sêmen de dois homens. Se eu não sei que ela teve uma relação consensual, a investigação pode seguir por um rumo incorreto”, diz.
A mesma lógica, segundo a delegada, explica perguntas sobre as roupas que a vítima usava no momento da agressão. “A roupa pode ser importante para entender como o fato se deu. Pode haver vestígios do agressor no tecido, como cabelos, barba, sangue ou sêmen.”
O desafio parece ser chegar a um equilíbrio entre método e tom – se perguntar é necessário, emitir juízos de valor, não. “É um desestímulo à denúncia porque a mulher se vê mais uma vez sendo violada: ela já foi vítima de uma situação delicada de ser contada; já vai enfrentar estigmas; e ainda tem que contar tudo para um desconhecido que conduz o relato de uma forma não acolhedora”, avalia a defensora pública Camille da Costa.
Ela reforça que as perguntas devem ser voltadas para a figura do agressor, e não da vítima. “Se estamos discutindo práticas de crime e se o comportamento da vítima influencia o do agressor, por que não pergunto isso em outras situações? Quando você é vítima de um roubo, é questionado sobre o que fez ou o que estava vestindo?”