No processo de revisão da Lei Maria da Penha, a recente aprovação pelo Senado do PLC 07/2016 – que entre outras medidas dá à autoridade policial poder de decidir sobre a concessão de medidas protetivas para mulheres em situação de violência doméstica – trouxe preocupação entre especialistas e órgãos envolvidos no enfrentamento a essa violência e gerou manifestações contrárias de entidades que representam operadores do direito que atuam no campo da violência contra as mulheres. Mas antes de buscar compreender porque há gente contra uma medida que à primeira vista irá garantir mais agilidade para a proteção à mulher, é preciso perguntar primeiro por que essa lei está sendo revisada.
(Blog #AgoraÉQueSãoElas/Folha, 01/11/2017 – acesse no site de origem)
Por que mudar a Lei Maria da Penha?
Conforme demonstrado por inúmeros estudos, o problema parece não estar na Lei 11.340, considerada pela ONU como uma das melhores do mundo no enfrentamento à violência doméstica contra mulheres, mas no seu não cumprimento em sua integralidade e em sua implementação desigual nas diversas realidades em que vivem as brasileiras. A própria CPMI que investigou a situação no país recomendou o fortalecimento da rede de atendimento multidisciplinar e aumento da dotação orçamentária para os serviços em todo o território nacional.
As mudanças favorecem as mulheres?
O PLC 07/2016, aprovado pelo Senado no último dia 10 de outubro, propõe várias alterações na Lei Maria da Penha, a maioria voltada a aumentar a proteção das mulheres, como o artigo 10-A, que prevê “atendimento policial e pericial especializado e ininterrupto”, de preferência por profissional do sexo feminino, e determina a garantia de que a mulher não tenha contato com o agressor – o que teria evitado o recente assassinato de Laís Andrade dentro da viatura policial que a conduzia junto com o ex-companheiro à delegacia em Teófilo Otoni (MG). Determina também que deve ser evitada a revitimização, quando a mulher é obrigada a repetir sucessivas vezes o relato da violência. Já o artigo 12-A define que Estados e DF, ao formular suas políticas de enfrentamento à violência doméstica, irão priorizar a criação de delegacias de atendimento e núcleos de investigação especializados em violência contra as mulheres.
Todas são medidas fundamentais, que irão fortalecer a capacidade do Estado de proteger as mulheres. Desde que não se deixem de lado outros investimentos importantes, em órgãos e equipamentos voltados para o acolhimento e assistência psicossocial e jurídica às mulheres, são bem-vindas todas as ações para garantir o atendimento multidisciplinar e o acesso das mulheres a seus direitos.
Colocando o carro na frente dos bois
Contudo, no contexto atual, em que existem pouco mais de 500 delegacias da mulher no país, concentradas nas capitais e maiores cidades, para atender a milhões de mulheres que enfrentam violências cotidianas nos mais de 5 mil municípios brasileiros, a principal preocupação é com o artigo 12-B, que concede à autoridade policial o poder de conceder (ou não) medidas protetivas para mulheres em situação de violência. A maior crítica que parte de órgãos representativos do sistema de justiça aponta para a inconstitucionalidade dessa alteração, que transfere para a polícia um poder que compete ao judiciário, o que abriria caminho para que advogados questionem a Lei Maria da Penha como inconstitucional.
Já representantes de movimentos de mulheres e de defesa de direitos estão muito mais preocupadas com um longo histórico de violência policial contra mulheres que procuram ajuda. Em matéria publicada no dia 28 pelo Diário Catarinense uma mulher de 34 anos relata que se sentiu julgada pelo policial de plantão: “Ele questionou se havia necessidade de registrar o BO por causa daquilo e se eu tinha certeza. Parecia que o policial estava do lado dele (agressor). Eu saí da delegacia pior do que entrei”.
Há várias honrosas exceções, policiais civis e militares que atuam de maneira quase heroica para proteger as mulheres. Sabemos que há muitas delegadas e delegados que buscam realmente compreender as queixas de cada mulher, mesmo que seja a mesma que já esteve outras vezes e nunca quis formalizar a denúncia. Mas é fato comprovado que as delegacias estão sucateadas, com dificuldades para atender todas as demandas e que, em geral, seus agentes percebem a violência doméstica e as ameaças contra mulheres como algo de menor importância.
Uma medida protetiva expedida só tem valor se houver uma notificação. As delegacias brasileiras estão preparadas para mais essa tarefa, a de notificar o agressor sobre qual é a medida e que ele é obrigado a cumpri-la? Não seria melhor primeiro aumentar em número e qualidade a estrutura das delegacias em todo o país e capacitar seus agentes para atender de forma adequada as múltiplas dimensões da violência de gênero?
Despreparadas, desequipadas e frequentemente pouco sensíveis às denúncias das mulheres, as delegacias continuarão a ser uma porta fechada para o acesso delas a seus direitos. Mais uma vez perderão as mulheres, que passarão a ser também vítimas da violência institucional. Não se pode permitir o aumento da vulnerabilidade e dos riscos para a integridade emocional e física das mulheres, inclusive para suas vidas. As mulheres brasileiras não precisam de ‘soluções mágicas’, apenas do cumprimento integral, multissetorial e efetivo da Lei Maria da Penha, algo que esperam há mais de 11 anos.
Marisa Sanematsu é jornalista, editora da Agência Patrícia Galvão e diretora de conteúdo do Instituto Patrícia Galvão.