(El País, 11/07/2016) É importante que o Estado seja um grande exemplo ao receber a pessoa que foi abusada sexualmente como vítima, não colocando sobre ela a culpa do ato
O caso do estupro coletivo ocorrido no Rio de Janeiro a uma adolescente impulsionou um debate sobre uma violência nada nova, ultrajante, que geralmente fica sob às sombras e, muitas vezes, sem a responsabilização do agressor. Sabemos que a violência cometida contra essa adolescente é diária, silenciosa e acontece em todos os níveis sociais e nos mais variados locais. O estupro é cotidiano.
A violência contra a mulher é parte de uma cultura onde todas as meninas, adolescentes e mulheres devem estar à disposição de quem “manda”. É parte de uma sociedade estruturada numa cultura patriarcal, machista, na qual precisa ser desenvolvida uma nova concepção de masculinidade.
Mas ela não acontece só – o que já seria muito – nos morros do Rio de Janeiro. Ela está aqui, ao nosso lado e encontra uma série de mantos culturais onde esconder-se. Era a saia que estava curta demais. O suposto consentimento de uma garota sob o efeito do álcool, que mal podia dizer “não”. A “novinha” que, por já ter corpo de mulher, certamente já “está à disposição”. A filha que, por não “se portar bem” acabou estimulando o pai. Sob os olhos de muitos, tais “justificativas” isentam o agressor.
Para aumentar ainda mais o nosso espanto, como se isso já não fosse suficiente, segundo dados do Dossiê Mulher publicado em junho, 62,2% das vítimas de violência sexual no estado do Rio de Janeiro, registrados em 2015, têm até 17 anos. Em 30,7% das ocorrências, elas tinham até 11 anos. Essa, que é uma fase tão essencial para o desenvolvimento de uma vida plena e saudável, pode ser colocada em cheque num piscar de olhos de toda uma sociedade que prefere não ver e aceitar essa violência. Assim como no Rio de Janeiro, nos outros estados do país a situação é parecida. Um cenário ainda mais estarrecedor se considerarmos a grande subnotificação que há nas denúncias de crime de violência sexual.
Sabemos que para quebrar esse ciclo é necessário mais do que a denúncia da vítima, a começar pelo apoio do Estado. É importante que ele seja um grande exemplo ao receber essa pessoa como vítima, não colocando sobre ela a culpa do ato. Porque acreditamos em um Estado que protege e interrompe o ciclo da violência.
Acreditamos que parte desta transformação pode – e deve – ser alterada para melhor nos próximos dias, quando o Congresso Nacional votar o Projeto de Lei 3792/2015, apresentado pela Frente Parlamentar de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente e que já conta com o apoio de diversas associações e redes atuantes na área. Desde o dia 7 de junho o PL está em regime de urgência para ir ao Plenário na Câmara dos Deputados. Entre os pontos inovadores do projeto destaca-se a necessidade de evitar que crianças e adolescentes vítimas de violência física, sexual ou psicológica sofram com o excesso de exposição à situação que às vitimou. Atualmente, não bastasse a violência sofrida, a vítima é obrigada a contar inúmeras vezes o fato ocorrido, seja nos Conselhos Tutelares ou na delegacia de polícia, um processo torturante que só amplia a dor sentida.
O projeto de lei também estabelece um pacto e protocolo no qual cada serviço compreenda o seu papel no atendimento da vitima. Ao médico não deve interessar se o agressor foi o avô ou o tio. Ao conselheiro tutelar não se deve mostrar o corpo desnudo, para indicar marcas da violência. Ao policial, não devem interessar – nem devem ser julgadas – as práticas sexuais consentidas dessa vítima.
Não é aceitável, sob hipótese alguma, que o ambiente institucional do Estado dê sequência ao crime cometido na rua ou entre quatro paredes. Pelo contrário: a delegacia de polícia ou o órgão de saúde deve ser o início de uma recuperação terapêutica e da consequente responsabilização do agressor. A estrutura do Estado deve ser o local onde a vítima se sinta protegida e acolhida, e não novamente violentada.
Infelizmente, não é o que acontece hoje. Pode-se chegar numa delegacia e haver ali um delegado sensível, afável, que de fato escute a pessoa de maneira respeitosa e interessada. Mas pode também haver ali um delegado que logo desacredita da denúncia ou faz pouco caso sem sequer investigar, e que por fim desconfia da vítima e a torna culpada do próprio mal sofrido. A mudança é brutal e não pode depender da sorte e do acaso.
É diante deste quadro que a Câmara dos Deputados tem a oportunidade histórica de aprovar o Projeto de Lei 3792/2015 e dar um passo importante para o início de um outro modo do Estado brasileiro atender as crianças e adolescentes vítimas de violência. Porque o Estado não pode ser também um violador de direitos, mas aquele que acolhe e protege as vítimas de violências que não afetam só o corpo, mas também ferem a alma.
Rodrigo Santini é diretor Executivo da Childhood Brasil, organização parte da World Childhood Foundation que trabalha pelo enfrentamento a violência sexual contra crianças e adolescentes no país.
Acesse no site de origem: Por um Estado protetor, por Rodrigo Santini (El País, 11/07/2016)