(G1, 01/08/2016) Sônia Maurelli é pesquisadora e fundadora da Casa de Isabel. G1 ouviu 10 personagens para abordar os 10 anos da Lei Maria da Penha.
O G1 ouviu 10 personagens para abordar diferentes pontos de vista sobre a Lei Maria da Penha, que completa 10 anos. A seguir, leia o depoimento de Sônia Regina Maurelli, ativista, pesquisadora e presidente fundadora da organização social de saúde Casa de Isabel:
“Eu comecei a trabalhar com mulheres vítimas de violência muito jovem. Eu tinha por volta de 16, 17 anos. Isso porque, desde muito nova, eu sempre gostei de ouvir. E, na minha família, eu sempre vivi ouvindo histórias. Foi ali que ouvi coisas que eu não entendia muito o porquê, e ficava pensando nisso.
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A minha mãe é uma pessoa que sofreu barbaridades com violência doméstica. A minha avó, mãe dela, também. Minha avó se casou muito jovem, com 13 anos, e ela era muito rica. Na segunda gravidez, o marido dessa minha avó a colocou no manicômio. E ela nunca foi louca, mas ele queria a herança, os bens. Minha mãe só não nasceu dentro desse manicômio porque meu tio impediu.
Eu ouvia as histórias que minha avó contava e eu ficava horrorizada. Era uma mulher extremamente meiga, extremamente lúcida. Apesar de pouca escolaridade, era de uma sabedoria infinita. E eu pensava: ‘gente, como alguém deixa encarcerada uma pessoa tão boazinha?’.
Hoje, sei que ela tem sequelas, mas naquela época eu só achava que ela era boa demais, passiva demais. Mas ela era doente porque sabia o que tinha acontecido com ela. E aquilo começou a me interessar.
Agora, estou com 55 anos. Trabalho com violência há mais de 35 anos, então não sei fazer outra coisa. Sempre trabalhei com isso e sempre atuei nessa área.
Eu tinha o meu emprego, mas eu trabalhava também em entidades eclesiásticas de base. Comecei aprendendo aí, nas organizações que a gente fazia dentro das igrejas, ouvindo essas mulheres. Naquele tempo, a gente não podia fazer muita coisa, então a gente trabalhava com aconselhamento.
Eu trabalhava muito em porta de fábrica. Ouvia muito sobre os assédios que as meninas sofriam e toda aquela preocupação com a mulher, com o bem estar dela e dos filhos.
E a gente se reunia muito, pois a gente que trabalha com movimento social, todo mundo se conhece, mesmo que seja só pelo nome. Eu era conhecida como a ‘Soninha de São Miguel’. Chegou um ponto que falei: ‘gente, temos que mudar isso, a gente não tem um lugar para se organizar. A gente se organiza em igreja, nas praças públicas, nas nossas casas… temos que mudar essa história’. E aí nasce a Casa de Isabel.
Como eu conhecia um leque grande de pessoas, perguntava para as companheiras: ‘você conhece alguem que pode ajudar com ação?’. E falavam: ‘olha, conheço alguém que pode ficar meia hora por dia’. E aí foi, uma operação de formiguinha.
A gente ficou uns cinco anos como voluntárias. Ninguém tinha salário, ninguém recebia nada. Aquilo começou a chamar a atenção da comunidade. A gente não tinha dinheiro para almoço, então elas traziam almoço, bolo… E assim ganhamos o respeito da comunidade e das mulheres, e começamos a prepará-las. Nós temos que denunciar sempre.
Para trabalhar nessa área, tem que gostar de gente e tem que gostar de trabalhar com a diversidade. Não pode achar que é desafio, pois isso é uma coisa que o homem tem que estar preparado. Nós temos casos aqui que a gente poderia conversar durante dias. São barbáries cometidas com essas meninas e mulheres.
Também tem que ter desprendimento. Nós tivemos muitos profissionais que passaram aqui e não conseguiram ficar porque somatizaram o que ouviram. Já tivemos profissionais que surtaram. Psicólogas que foram a vida toda abusadas, e aí quando ouviram as histórias dos pacientes, deu conflito e entraram em curto. Então a gente toma muito cuidado.
O maior desafio no atendimento é essas mulheres não conseguirem pensar que elas podem ter alternativas. A mulher é muito cuidadosa, ela é como uma loba com a sua cria. Ela pensa: ‘eu vou me quebrar, eu vou me ferrar, mas e os meus filhos, como vai ser?’. O maior desafio para elas é pensar: ‘eu sou capaz de ir à luta e conseguir’. A gente não é assistencialista. A gente tenta empoderá-la em cima das necessidades reais. E falamos: ‘nega, vai ser difícil, mas não impossível’.
Nós queremos nossas mulheres empoderadas. O empoderamento é tudo, porque se eu não tiver uma alternativa de amanhã conseguir ir fazer um serviço de faxina e trazer o pão pra casa, eu vou suportar mais um dia na situação de violência doméstica, e mais um dia pode ser fatal.
Só que está vindo uma outra geração que são essas adolescentes, filhas dessas relações, que estão com problemas gravíssimos. São vítimas também. Criança com ansiedade, criança depressiva, criança que já tem uma visão perversa da vida. Nas oficinas, elas dizem que tem ódio mortal do pai. Muitas são abusadas.
Eu falo há 30 anos que a violência reproduz. Lares conflituosos, criança problemática, adolescente problemático. Nós precisamos ter lares seguros. Então o que a gente faz com essas mulheres é discutir tudo. Fazemos questão de fazer festividades, de comemorar aniversário, porque muitas nunca tiveram uma festa de aniversário. E aí nunca comemoraram para seus filhos porque nunca foi importante para elas.
Então é importante ouvir. E eu gosto de ouvir. Eu gosto de abraçar. Aqui todo mundo beija, porque essas mulheres não tiveram afetividade. Tem mulheres que a gente abraça e elas começam a chorar. Ontem falei para uma mulher idosa, vítima de violência doméstica há muitos anos: ‘querida, 67 anos e não tem uma ruguinha!’, e comecei a passar a mão no rosto dela. Ela começou a chorar. Eu falei: ‘desculpa, machuquei a senhora?’. E ela: ‘meu marido beliscava meu rosto com muita força. Ele me batia muito no rosto. E agora a senhora está falando que meu rosto é lindo…’. Falei ‘não tive intenção, mas seu rosto é lindo”. E comecei a brincar, perguntando se ela tinha passado formol. Aí ela ria…
Agora, tenho três filhas e todas estão engajadas nessa área. Uma é toxicologista e trabalha com mulheres. A segunda trabalha com políticas publicas. Já a terceira disse que quer fazer medicina. Falei: ‘mas vai fazer o que?’. E ela: ‘alguma coisa voltada à mulher, né, mamãe?’.
A gente vive uma vida simples. São mulheres simples que trabalham conosco, mas de uma infinita sabedoria porque sabem ouvir, entender a dor do outro. E isso pra nós basta.”
Clara Velasco
Acesse no site de origem: ‘Queremos mulheres empoderadas’, diz ativista e presidente de ONG (G1, 01/08/2016)