Desnaturalização da violência do assédio sexual
(Estadão.com, 12/01/2018 – acesse no site de origem)
Nos Estados Unidos, mais de trezentas mulheres do ramo do entretenimento, dentre atrizes, diretoras, executivas, escritoras, produtoras, se uniram para uma iniciativa pioneira destinada ao combate do assédio sexual em Hollywood – a Time’s Up – com o objetivo de angariar fundos para ajudar as trabalhadoras que são alvo desta prática a se protegerem e a receberem suporte às denúncias realizadas.
Não há mais tempo de silêncio! Não há mais tempo de espera! Não há mais tempo de tolerar a discriminação, o assédio e o abuso! Assim clama o ‘Time’s Up’ a angariar recursos. Sororidade e solidariedade marcam a iniciativa, que são as mais poderosas armas do feminismo no momento.
Para o dicionário americano Merriam-Webster, a busca pela palavra ‘Feminismo’ aumentou em 70% em 2017 e foi a escolhida do ano; a revista Time elegeu como personalidade do ano as mulheres do movimento #metoo da internet; foram as “silence breakers” de Hollywood que deflagraram as investidas do produtor Harvey Weinstein.
No Brasil, “mexeu com uma, mexeu com todas” descortinou o movimento das globais contra o assédio sexual dos bastidores da TV; o caso do ônibus da Paulista trouxe à tona os buracos do sistema de Justiça e a necessidade de uma reforma urgente; até o Itamaraty se mobiliza diante de acusações de assédio sexual de um embaixador contra diplomatas brasileiras, instaurando procedimento administrativo às vésperas do lançamento de uma cartilha justamente sobre o tema.
A iniciativa ‘Time’s Up’ é um sucesso nos Estados Unidos. Em apenas um dia no ar, atingiram quase a meta de quinze milhões de dólares.
Enquanto isso, as mulheres brasileiras contam com regressos e pouca proteção, apesar da esperança de que em 2018 a situação deva melhorar.
O crime de assédio sexual, previsto no artigo 216-A do Código Penal, foi introduzido pela Lei n. 10.224/01 e tem pena de detenção, de um a dois anos, sendo restrito ao fato ocorrido no ambiente do trabalho.
Depende de representação da vítima e aplicável a Lei 9.099/95, ou seja, cabíveis a transação penal, a suspensão condicional do processo e a extinção da punibilidade com a composição dos danos civis.
Não necessariamente o fato será objeto de ação penal ou mesmo ocorrerá a aplicação de uma pena criminal.
Dentre as mudanças trazidas pela Lei n. 13.467/2017 na CLT – Consolidação das Leis do Trabalho, em seus artigos 223-A e seguintes, a reparação indenizatória a quem sofre danos – e neste cenário está incluído o assédio sexual – será proporcional ao salário do trabalhador.
Fala-se em ‘castas do assédio’ em que a dignidade da mulher será medida pelo tamanho do seu salário.
Ainda é preciso trabalhar pesado para medir o assédio sexual no ambiente do trabalho – inclusive no âmbito da Justiça Criminal – e compreender todas as suas nuances, mas é fato que atinge mais mulheres do que homens.
Em seu relatório “Sexual harassment at work: National and international responses”, a Organização Internacional do Trabalho vai além da informação de que este tipo de violência atinge mais mulheres.
Mostra quais são as mais vulneráveis que estão mais suscetíveis ao assédio: as financeiramente dependentes, as jovens, solteiras, separadas, viúvas, divorciadas e migrantes.
E também que o local onde a mulher está empregada é um fator de maior ou menor probabilidade de sofrer o assédio: empregos não tradicionais e ambientes predominantemente masculinos, além das mulheres que trabalham para supervisores masculinos.
Em 2015, a Rede Globo de Televisão exibiu a série “Verdades Secretas”, de Walcyr Carrasco, que explorou o assédio e a prostituição do mundo das modelos. Era o ‘book rosa’ um dos assuntos mais comentados, um catálogo de modelos disponíveis para ter relações sexuais com os seus clientes em troca de dinheiro, prêmios ou mesmo vantagens profissionais.
Fala-se também de outra prática comum no ramo do entretenimento, o tal do ‘teste do sofá’, nada mais do que a naturalização do assédio sexual, consistente na exigência de sexo em troca de papeis em filmes, promoções ou trabalhos de modelo às aspirantes nas respectivas profissões.
Se no ambiente do entretenimento antes tais práticas podiam ser vistas como as ‘regras do jogo’ – ou ainda muitos assim acreditam -, agora é hora de mostrar a cara do assédio neste ambiente, desnaturalizar a violência, reconhecer que sua existência não é a regra da vez, tampouco brincadeira ou algo normal ou banal.
É hora de adotar medidas sérias e efetivas para impedir a sua ocorrência ou, na sua existência, de responsabilizar o assediador à altura do fato praticado.
No mencionado relatório ‘Sexual harassment at work: National and international responses’, a Organização Internacional do Trabalho indica o custo do assédio para a vítima, para o trabalhador e para a sociedade.
Neste mesmo sentido e de forma bem didática, a cartilha desenvolvida pela Fiocruz – Fundação Osvaldo Cruz, é um documento síntese da Política Institucional de Prevenção e Enfrentamento da Violência e Assédio Moral no trabalho na Fiocruz.
Enquanto a pessoa assediada pode sofrer uma série de problemas de saúde de ordem psicopatológica, psicossomática e comportamental, além de perder a motivação, a autoestima, isolar-se socialmente e distanciar-se da família, a organização pode ter prejuízo financeiro e administrativo, como queda da produtividade, falta ao trabalho, ambiente hostil, aumento de afastamentos, além de outros.
A sociedade, por sua vez, suportar aumento do desemprego, arcar com custos para tratamento e reabilitação, despesas para a previdência social, com a Justiça, etc.
Times’Up on Silence!
Não há mais tempo de silêncio!
Aplacar o silêncio não só se constitui em uma forma de interromper a violência individual.
Significa possibilitar a mudança de uma cultura e a saúde de todos.
Sororidade e solidariedade se transformam em muito mais do que iniciativas pontuais, mas em instrumentos indispensáveis ao enfrentamento da violência de gênero e à construção de uma sociedade mais digna e justa.
Fabíola Sucasas Negrão Covas, promotora de Justiça Assessora do Núcleo de Inclusão Social do CAO Cível e Tutela Coletiva do Ministério Público de São Paulo e diretora do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático