Três estupros coletivos no Piauí revelam mal disseminado no país

14 de junho, 2016

(El País, 14/06/2016) Está nas mãos da polícia do Piauí investigar mais um caso registrado no Estado de estupro coletivo de garotas menores de idade. Aconteceu em Pajeú, cidade de 3.300 habitantes que fica a uns 400 quilômetros de distância da capital, Teresina, com uma adolescente de 14 anos. Ela foi levada ao banheiro do ginásio poliesportivo da cidade por três rapazes de 16 e 17 anos e por um maior de idade, de 19 anos – esse último, seu ex-namorado. Quem a resgatou na última terça-feira, 7 de junho, foi sua madrasta, que saiu à sua procura e a encontrou desacordada e nua no chão do banheiro, entre os suspeitos sem roupa que logo tentaram fugir, mas terminaram detidos. Eles afirmaram às autoridades que o ato teria envolvido sexo oral, mas não penetração, e que teria sido consentido. Disseram isso, mesmo diante da vítima desmaiada.

É o terceiro episódio criminoso desse tipo no Piauí divulgado pela grande imprensa em cerca de um ano. O mais antigo foi registrado em Castelo, a uns 180 quilômetros da capital, em 27 de maio de 2015, quando cinco homens (um deles, maior de idade) estupraram quatro jovens que depois foram atiradas de um barranco. Uma delas morreu, e o caso está em fase de julgamento. O outro, mais recente, aconteceu há menos de um mês em Bom Jesus, a 700 quilômetros de Teresina, quando quatro menores e um rapaz de 18 anos violentaram uma menina de 17, encontrada depois em coma alcoólico e com sinais de violência. A polícia acredita que ela conhecia os agressores, mas os fatos ainda estão sendo apurados.

Diante da triste sequência de acontecimentos – potencializada pelo estupro coletivo da adolescente de 17 anos que foi violada no Morro do Barão, no Rio de Janeiro, que comoveu o país ao ser compartilhado em redes sociais – o Piauí aparece na mídia nacional como um lugar onde esse tipo de violência seria mais frequente. Mas não é o caso. Especialistas afirmam que é preciso desconstruir a ideia de que haja um padrão para crimes sexuais – no Brasil ou em outros países. “O estupro é como se fosse uma doença que se espalha massivamente, sem distinção. Ocorre todos os dias, em todas as classes e situações”, afirma a socióloga Fátima Pacheco Jordão.

Para ela, que é fundadora e conselheira do Instituto Patrícia Galvão, uma organização social voltada à comunicação e aos direitos das mulheres, “agora a imprensa está levando o assunto em consideração”. Mas o estupro ocorre “da festa no escritório de advocacia em São Paulo, com uma mulher é abusada pelos colegas, ao interior do Piauí, por amigos que dopam a vítima”, diz Fátima – em referência a uma estagiária que se suicidou em 2013, e que morreu sob a suspeita de ter sido estuprada em uma festa da empresa de advogados onde trabalhava. O escritório negou o fato e, à época, anunciou que estava colaborando com as investigações.

Os relatos de abusos entre profissionais surgem com frequência. Nesta semana circulou no meio audiovisual uma carta de repúdio a assédios recorrentes no set de filmagem da série de TV A Lei, produzida pela Intro para a Turner em São Paulo. O texto fala em “falta de respeito e assédio sexual” que as mulheres da equipe “estão sofrendo diariamente”. “Não será o primeiro set em que isso acontece, mas será o primeiro set em que isso deixará de acontecer”, diz a carta. E prossegue, com exemplos do que acontece: “Ele soprou na minha nuca sem perguntar se podia. Isso é assédio. (…). Ele fez uma piada dizendo que ia colocar uma balinha na minha água para depois aproveitar de mim. Isso é assédio”.

Dados nacionais sobre a violência contra as mulheres divulgados com base nas denúncias coletadas pela Central de Atendimento à Mulher (180) em 2015 comprovam que o crime do estupro – que desde de 2009 é descrito na lei brasileira como resultado de qualquer ato libidinoso sem o consentimento da vítima – acontece de maneira reiterada. Mais de 38% das mulheres em situação de violência são abusadas todos os dias e outros 33,86%, semanalmente. Dos relatos de violência registrados na Central nos dez primeiros meses do ano passado, 85,85% corresponderam a situações de violência doméstica e familiar. Em 67,36% dos relatos, as violências foram cometidas por homens com quem as vítimas tinham ou já tiveram algum vínculo afetivo.

Estupráveis versus não estupráveis

Lia Zanotta Machado enxerga o destaque dado na imprensa ao assunto – e o celebra, ainda que concorde com Fátima Jordão ao estabelecer que a violência sexual no país está a espreita de qualquer uma, em qualquer lugar. “Acho importante a comoção de agora, mas o estupro coletivo acontece sempre e muito. Vem de uma cultura de longa duração, em que se divide a figura de uma mulher honesta das outras. E dessas outras você pode dispor, ter a posse delas. Então, quando algumas mulheres dizem ‘não’, o homem não acredita”, esclareceu a antropóloga da Universidade de Brasília ao programa Cidadania, da Globonews. Em outras palavras, os estupros acontecem, porque na nossa sociedade a mulher é vista como uma extensão da propriedade do homem. “Ao invés de se perguntar ao homem por que ele fez aquilo, pergunta-se para a mulher por que ela estava usando determinada roupa ou andando sozinha a determinada hora da noite”, ela completa.

A afirmação é comum, inclusive na boca, muitas vezes, das autoridades públicas, mas é preciso desconstruir a ideia de que o estupro é um crime ligado a quem está marginalizado, sem acesso à Educação ou vindo de uma família desestruturada. Quem opina é a diretora do Instituto Patrícia Galvão, Marisa Sanematsu, para quem “estamos diante da ponta de um iceberg diante dos casos escabrosos que vieram à tona”. “É preciso manter a mobilização e combater a subnotificação dos casos”, diz a especialista, que estima que apenas de 10 a 24% dos casos de estupro são notificados no Brasil. Mas os dados são de difícil análise.

Marisa, que edita o Portal Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha, reconhece que o problema é nacional, ainda que cada lugar tem características culturais próprias. A questão, a seu ver, é que a violência sexual sempre vai acontecer onde o machismo siga perpetuando as agressões. É o caso da Índia, em que o papel social da mulher é inferior ao do homem – e é também o do Brasil, “que não divide sua sociedade em castas, mas está imerso em uma cultura do estupro que separa as mulheres em estupráveis (as que se protegem dos perigos) e não estupráveis (as que criam oportunidades)”. Para que a barbárie deixe de existir, ela espera, como muitas, que a curiosidade e o espanto plantados na sociedade se transformem em permanente vigilância.

Camila Moraes

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