A presença do contador A.C.S, 58 anos, em uma reunião do grupo reflexivo para homens enquadrados na lei Maria da Penha, no Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde, em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo, desmistifica a imagem do monstro –esperada pelo senso comum– do homem capaz de agredir uma mulher.
(UOL, 26/09/2017 – acesse no site de origem)
Ao contar o que o levou até a reunião, A.C.S fala de forma calma que perdeu a cabeça diante da recusa de duas filhas (ele tem quatro filhos no total, de dois casamentos diferentes) de assinarem um documento que o recolocava como dono da empresa criada e dirigida por ele.
“Eu mandei para uma delas um áudio no WhatsApp em que falava que mataria ela, a irmã e a mãe, caso não assinassem o papel que me recolocava como proprietário. Eu nunca mataria ninguém, mas elas nem ninguém têm obrigação de saber. Entendi que a violência emocional é tão grave quanto a física”, afirmou ele, que chegou a ficar 16 dias preso pela ameaça –uma das formas de violência previstas na Maria da Penha– e que estava no 13º encontro dos 16 que deveria participar antes de o seu caso ser julgado.
Jeito de ser homem
“A maior parte dos homens que vêm aqui participar dos encontros são pessoas comuns. Eles chegam aqui se sentindo injustiçados. Afinal, o que foi apontado como crime é o jeito de ele ser homem”, fala o psicólogo Leandro Feitosa, que coordena o grupo reflexivo que funciona no Coletivo desde 2009, mas que trabalha com homens agressores desde 2006, ano em que foi criada a lei Maria da Penha.
As situações que levam à violência são corriqueiras: separação, ciúme, desemprego, partilha de bens, entre outras.
“Já julguei casos em que a mulher foi seriamente agredida porque o feijão não estava bem cozido, por causa de uma mensagem de WhatsApp enviada por um colega de trabalho e que foi considerada suspeita”, conta a juíza Teresa Cristina Cabral Santana Rodrigues dos Santos, integrante da Comesp (Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Estado de São Paulo).
A juíza afirma que a violência contra a mulher é a única forma democrática de violência. Vítimas e agressores são encontrados em todos os segmentos da sociedade.
“O homem que agride mulher é aquele que levanta todo dia e sai para trabalhar. Frequentas grupos sociais corriqueiros, como reuniões de pais em escolas. Ele se veste e age de forma socialmente aceita. Só que, ao chegar em casa, comporta-se de forma violenta para manter a qualquer custo o posto de autoridade máxima”, declara a magistrada.
Papel de provedor em xeque
Segundo Leandro Feitosa, o motor dos atos violentos é a incapacidade de o homem lidar com outro recurso –que não a violência– com o questionamento do papel que ele considera ser o seu fundamental: provedor e responsável pela ordem familiar.
“Um dos participantes do grupo bateu na enteada de 19 anos que se recusou a tomar conta dos irmãos menores para que ele saísse para trabalhar. Mas ele não era o único a colaborar com o sustento da família. A própria companheira estava fora por estar trabalhando”, fala o psicólogo.
O que o psicólogo e a juíza veem no dia a dia foi comprovado por uma revisão sistemática da literatura científica internacional feita por pesquisadores da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), em 2016.
Foram analisados 33 artigos, publicados no mundo entre 2000 e 2010. Com base no material, pesquisadores da universidade perceberam que, a despeito de a maioria ter entre 25 e 30 anos e baixa escolaridade, havia agressores de todas as idades, condição financeira, nível de instrução e situação profissional.
De acordo com a juíza Teresa Cristina, o enfrentamento da violência contra a mulher passa justamente por essa desmistificação de quem é o agressor. “Ao contrário dos crimes comuns, a violência contra a mulher é uma questão cultural. Para combatê-la, o homem tem de aprender um novo papel, e os grupos reflexivos podem contribuir nesse processo.”
A magistrada diz que, em quatro anos encaminhando os homens que condena pela lei Maria da Penha ao grupo reflexivo E Agora José?, de Santo André (SP), não pegou nenhum caso de reincidência. “Foi promovida uma quebra de paradigmas.”
Adriana Nogueira