No breve período em que estagiei na Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher me deparei com todos os tipos imagináveis de violência. Verbal, psicológica, física, estrutural, institucional, moral, ética, legal, dentre tantas outras. Lembro quando fui aceita para o estágio, carregava em mim um preconceito mascarado acerca da Lei Maria da Penha. Recordo que, desde a edição e aplicação da Lei, sempre ouvi o comentários recheados de machismo, incitando sorrateiramente a violência.
(Justificando, 06/02/2017 – acesse no site de origem)
A quantidade de mulheres que registram boletim de ocorrência junto às Delegacias de Proteção, dizem as más línguas, é enorme. “Não pode falar grosso ou dar um tapinha que já vai dar queixa”, propagam os “moralistas defensores da família e dos bons costumes”. Infelizmente, sinto em contradizê-los, mas o número de vítimas que NÃO registram a agressão é infinitamente maior.
Digo isso, pois, diversas mulheres que atendi durante meu estágio se dirigiam até a Delegacia, algumas com hematomas, algumas com leves escoriações, algumas com ínfimos arranhões, todas elas com lágrimas e inteiramente envergonhadas de estarem ali, deixavam de prestar queixa após receberem a informação de que a ação penal de lesão corporal, depois do registro, é incondicionada à sua vontade. Ou seja, para os leigos, o agressor será processado mesmo que a vítima posteriormente manifeste o desejo de retirar a denúncia.
Vi mulheres comparecendo à Delegacia semanalmente. E voltando na semana seguinte para “retirar a queixa porque voltaram com o marido”. Vi delegadas, escrivãs e estagiárias condenando aquelas vítimas, estigmatizando-as como figuras carimbadas da delegacia que só “incomodavam e traziam trabalho”, bem como, ouvi os mais diversos comentários, desde o “mereceu ter apanhado” até o famoso “deveria ter apanhado mais”. Atendi e conversei com algumas dessas figuras carimbadas, como eram conhecidas, e a ampla maioria – para não dizer todas – sofreram, de fato, violência nas formas físicas, verbais e psicológicas por parte de seus companheiros. Contudo, quase todas, também, eram provenientes de famílias desestruturadas, com baixas condições financeiras, múltiplos filhos e inteiramente oprimidas.
Certamente, sequer passou pela cabeça daqueles que estigmatizaram tais vítimas que elas necessitavam retirar a queixa e reatar com o companheiro, pois não possuíam condições econômicas para sua subsistência e dos filhos. Jamais cogitaram que a submissão ao companheiro seja a única via para conseguir alimentar e educar os filhos, vez que nossa sociedade ainda é extremamente machista e misógina. Em nenhum momento ponderaram as razões que levam uma pessoa que tomou um soco na face “perdoar” seu agressor. Falta empatia.
É espantoso o descaso que um órgão especialmente criado para amparar e ajudar a mulher torna-se propagador de preconceitos e incita a violência e o ódio.
Fora do âmbito das delegacias, no judiciário a violência institucional contra a mulher só se agrava.
Presenciei em incontáveis audiências nas varas de família pais “indignados” se recusando a pagar sua parte para a criança, além de empreenderem diversas manobras para camuflar seus proventos e, consequentemente, contribuir o menos possível para a pensão. Aliás, cabe referir que atualmente os Tribunais vêm fixando um percentual de 25% a 30% [1] sobre o salário mínimo do genitor à título de pensão alimentícia. Ou seja, é um disparate!
De outra banda, é notório que na vasta maioria dos casos a criança fica sob a guarda da mãe [2], que resta incumbida no ônus de prover o alimento diário, a educação, a moradia, o lazer e as demais necessidades básicas do menor. Acerca destas, vi mães trabalhando em dois, três empregos para manter os filhos, ao mesmo tempo em que testemunhei mulheres envergonhadas por necessitar recorrer às vias judiciais para receber os alimentos devidos pelo ex-companheiro.
Não bastasse tudo isto, concebam minha perplexidade ao chegar numa audiência na Vara de Violência Doméstica e me deparar com um juiz homem, um promotor de justiça homem, um defensor público homem e um estagiário homem.
O caso, segundo a denúncia, tratava-se de um caso de agressão, em que o ex-companheiro desferiu um soco na face da vítima, causando-lhe lesões corporais, em razão de ter descoberto uma traição e contraído HIV.
Ao final da audiência, após a saída do agressor, o juiz da vara, extremamente indignado comentou entre os companheiros “o cara deveria era ter batido mais, isso sim.”.
Independente dos motivos que levam a uma agressão, a violência jamais é aceitável ou compreensível. Estes pequenos exemplos que citei acima são diariamente reproduzidos em nossos órgãos públicos. A mulher sofre a violência institucional reiteradamente e de diversas formas. Não é de se estranhar que sinta medo e tenha receio de socorrer-se aos órgãos de apoio.
Violência jamais deve ser motivo de vergonha para a mulher. Precisamos combatê-la exaustivamente, aprimorar as estruturas estatais, mas, primordialmente, capacitar às pessoas que lidam com estas vítimas inseridas em uma sociedade machista e misóginas.
Graciele Dalla Libera é bacharel em Direito pela Universidade de Caxias do Sul.