Em julho, a BBC publicou uma reportagem sobre o “ritual” de estupro que meninas de 10 a 13 anos passam como parte de uma tradição no Malauí. As garotas são forçadas a terem sua iniciação sexual logo após a primeira menstruação com um homem pago pelos seus próprios pais – os que prestam esse tipo de “serviço” são chamados “hienas”.
(BBC Brasil, 12/11/2016 – acesse no site de origem)
Depois disso, uma mulher do Malaui contatou a BBC para explicar como sua experiência com esse ritual a inspirou a fazer uma campanha contra ele, pela proteção de meninas e mulheres. Essa é a história de Natasha Annie Tonthola:
“Eu sou a mais velha entre cinco filhos e cresci em uma vila no distrito central do Malauí, perto da capital, Lilongwe, e tinha 13 anos quando a cerimônia de iniciação aconteceu.
Meu pai era de uma outra vila ali perto, Mulanje, no sul do país, e eu fui mandada para lá para a cerimônia logo depois que tive minha primeira menstruação. Você não tem escolha – acontece com absolutamente todas as meninas da vila.
Disseram para nós que iríamos aprender sobre “ser mulher” e, para ser sincera, eu estava empolgada com isso. Assim como todas as outras meninas.
No último dia, uma das senhoras disse que nós havíamos chegado à parte final do processo. Ela disse que um “hiena” estava vindo nos visitar. “Não se preocupem, não estou falando do animal”, ela disse. “Estou falando de um homem”.
Mas não sabíamos realmente o que um hiena era ou o que ele iria fazer. Eles não nos contam que ele iria fazer sexo conosco.
Cada uma de nós tinha uma peça de roupa e nos disseram para tirá-la e colocá-la no chão. Depois, disseram que havia chegado a hora de mostrarmos que “nós sabíamos como tratar um homem, que nós sabíamos o que fazer para os nossos futuros maridos”. Aí, cobriram nossos olhos com uma venda.
Você não pode demonstrar medo, não pode mostrar que você não sabe o que está acontecendo com você.
Então o homem vem e te diz para deitar, você abre as pernas e ele faz o que “tem que fazer”. Não nos permitiam sequer saber quem o homem era – somente as senhoras sabiam.
Nós éramos meninas apenas, então nós estávamos tensas. E esse homem ficava empurrando nossas pernas para ficarem abertas. Eu só sentia dor. Quando ele terminou, eu fiquei aliviada. A senhora veio e disse: “Parabéns, vocês terminaram a cerimônia de iniciação. Vocês são mulheres agora.”
Muitas meninas acham que isso é normal, porque nós passamos por uma “lavagem cerebral” – nós achamos que “tudo bem, porque faz parte da tradição”.
Mas os hienas sequer usaram proteção e algumas meninas ficaram grávidas.
Quando voltamos para casa, não nos permitiam conversar ou brincar com meninas que não haviam passado pela experiência da cerimônia ainda. Não me deixaram falar para a minha irmã mais nova sobre isso. As meninas agora entram na puberdade antes e ficam menstruadas mais cedo, então a cerimônia está acontecendo com meninas de 10 ou 11 anos até.
Depois da cerimônia, minha vida só piorou. Meu pai, que era um policial, morreu no ano seguinte.
A tradição da “herança da esposa” diz que o irmão de um homem que morre deve casar com a viúva, para sustentar a família – mas a minha mãe se recusou a seguir esse costume.
Em vez disso, nós mudamos para a África do Sul, já que minha mãe tem suas origens lá e meu tio nos chamou para recomeçar a vida por ali.
Nós duas conseguimos um trabalho para ajudar com as despesas. Eu menti sobre minha idade e consegui um emprego em um salão e em uma cozinha. Também trabalhava como empregada doméstica. Mas apesar de trabalhar muito, nós não tínhamos dinheiro suficiente para pagar minha escola ou para ajudar minha família.
Então, pelos meus parentes do Malauí, eu descobri que existia um homem que estava disposto a pagar minha escola, com tanto que eu concordasse em casar com ele. Eu estava para fazer 16 anos, e eu não queria casar tão jovem. Minha mãe não queria isso para mim também. Mas eu estava desesperada para terminar a escola, e estava preocupada com meus irmãos e minha mãe – ela estava trabalhando tanto, que isso estava começando a afetar sua saúde.
Então eu acabei dizendo sim e me mudei de volta para o Malauí.
Violência doméstica
Nós tivemos um casamento tradicional e ele começou a pagar pelos meus estudos e a ajudar minha família inteira. Ele era 15 anos mais velho que eu, era formado, um homem de negócios bem-sucedido, mas era violento. Ele me batia o tempo todo. Eu ainda tenho cicatrizes no meu corpo daquele casamento.
Eu fiquei grávida com 17 anos de idade, mas felizmente eu consegui fazer meus exames antes de dar à luz minha filha. Mesmo assim meu marido continou sendo violento – eu quase perdi o bebê. Ele também me traiu durante o tempo todo que estivemos juntos. Eu fiquei muito mal. Não era assim que eu imaginava que minha vida fosse ser, e eu sabia que meu marido estava fazendo isso comigo porque eu era jovem e vulnerável e não tinha outro lugar para ir. Eu estava em uma armadilha.
Foi aí que meu tio, na África do Sul, veio me resgatar novamente. Ele sabia que eu era apaixonada por moda e arranjou um curso de design fashion para eu fazer.
Meu marido sempre me disse que, se eu o deixasse, ele iria atrás de mim e me mataria. Então eu tive que mentir e disse a ele: “Estarei de volta em casa em uma ou duas semanas”. Mas eu nunca voltei. Eu fiz o curso e trabalhei em um restaurante para pagá-lo.
Depois, eu voltei para o Malauí e comecei a desenhar roupas para pessoas famosas e influentes. Também abri um restaurante – cozinhar é minha outra paixão, uma terapia. E além disso, eu comecei um trabalho de organização na comunidade que atuava em diferentes áreas – desde manter as meninas na escola combatendo os casamentos precoces até educar pessoas sobre rituais e tradições – incluindo os hienas – que colocavam meninas em risco até ensinar as pessoas sobre HIV/Aids, gravidez não desejada, etc.
Nesse meio tempo, meu marido começou a me perseguir, chegou a ir até a minha casa e me bater na frente da minha filha, mas eu resisti.
E eu sabia que o que havia acontecido comigo aconteceria com tantas outras meninas e mulheres. Por isso, ficava cada vez mais motivada para trabalhar na comunidade para educar as pessoas, mas era muito difícil, principalmente quando começávamos a desafiar tradições como a dos hienas ou da “herança das mulheres”.
Em algumas comunidades, eles nos disseram: “Só porque vocês são formadas, educadas, isso não significa que vocês podem nos dizer o que devemos fazer. Essas tradições e costumes existem desde sempre e nós temos cumprido todas elas sem nenhum problema.”
Barreiras
Mas algumas senhoras e líderes religiosos nos ouviram – e algumas até pararam os rituais em suas vilas. No meu trabalho em comunidade eu aprendi muito mais sobre as barreiras que meninas enfrentam na escola. Quando famílias passam por um problema financeiro, elas tendem a continuar pagando escola para os seus filhos homens, mas fazem as meninas abandonarem os estudos.
E quando as meninas saem da escola, as famílias logo correm para agilizar um casamento para elas – para não deixá-las muito tempo sem “ocupações”. E muitas meninas acabam faltando a aulas porque não têm dinheiro para comprar absorventes.
Para resolver esse problema, uma das principais coisas que a minha organização faz é distribuir absorventes ou colectores reutilizáveis. Eles são parte de um kit que incluem calças com clips, para que eles não saiam do lugar, além de uma sacola a prova d’água, caso as garotas precisem trocar o absorvente na escola. Eles são biodegradáveis, mas têm um bom custo-benefício e são duráveis – por cinco anos, em média.
Também expandi isso para fraldas. Espero que isso ajude a reduzir o lixo que vai para os aterros.
Em 2011, eu percebi que precisava estabelecer uma organização formal – e esse foi o início da Fundação Mama Africa.
Apesar de tudo o que já aconteceu comigo, eu estou otimista sobre o futuro. Acho que há muita coisa que podemos fazer por mulheres e crianças que são vítimas dos hienas ou de violência de gênero – e tantos outros problemas sociais que estão aí. Não vai ser fácil, mas eu tenho esperanças.”